A circularidade, mais do que um modelo de produção, é o caminho para cidades mais sustentáveis e inteligentes. Em Portugal, multiplicam-se projetos piloto que testam a viabilidade da solução circular, mas falta abordar a questão de forma sistemática e cooperante.

A reutilização de água concentra grande parte das iniciativas de economia circular das cidades portuguesas. O atual quadro de seca e escassez aguça a procura de soluções. O aproveitamento de águas das piscinas e o tratamento de águas residuais para uso não potável, como a lavagem de ruas, de carros, de contentores, para a rega de jardins públicos ou bocas de incêndio, começa a ser testado um pouco por todo o país e é a face visível de uma mudança que tarda a chegar ao terreno.

A estatística europeia prova-o. Segundo o Tribunal de Contas Europeu, que analisou a taxa de circularidade nos países da União Europeia, Portugal tem o quarto pior desempenho dos 27, com uma taxa de circularidade de apenas 2,5%. “Quer dizer que todo o restante material que entra na economia acaba em aterro, a ser queimado ou a ser abandonado. Eventualmente, até a ser exportado para fora do país“, explica Susana Fonseca, vice-presidente da organização ambiental Zero. “A Europa não está muito melhor. Segundo o Eurostat, a média da União Europeia, é de 11,7%. Portugal está pior, mas estão todos bastante mal”, acrescenta.

É o confronto entre dois modelos de produção e utilização de recursos: o tradicional e linear, sustentado na prática “produz-utiliza-deita fora”; e a da economia circular baseada na ideia de que a produção e o consumo envolvem um circuito fechado, no qual os materiais e os recursos gerados são utlizados noutra parte do sistema.

Os resultados da economia circular na União Europeia são modestos: entre 2015 e 2021, a taxa de circularidade, que calcula a percentagem de materiais reciclados que são reutilizados, aumentou, em média, 0,4 pontos percentuais, tendo recuado em sete países (Lituânia, Suécia, Roménia, Dinamarca, Luxemburgo, Finlândia e Polónia). O Tribunal de Contas Europeu conclui que “parece muito difícil de alcançar” dar expressão à ambição da União Europeia de duplicar a percentagem de materiais reciclados e reintroduzidos na economia até 2030.

“Tornar um sistema circular, significa identificar todas as perdas, aproveitá-las para o interior do sistema e valorizá-las”, explica Lígia Pinto, professora da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. “Se olharmos para a cidade como sendo um território, onde se integram várias funções e vários sistemas, obviamente podemos olhar de forma crítica e tentar interligar alguns sistemas, por forma a aproveitar as energias que podem ter”, concretiza.

“Na cidade há muitas funções, a cidade vive de muita coisa. Vive dos transportes, dos serviços, de alguma indústria, de imensa logística, de produtos agrícolas e uma série de outros produtos. É olhar para todos esses sistemas e dizer como podemos integrá-los de forma a  ter menor impacto e menor desperdício de recursos”, aponta Lígia Pinto, também investigadora do Núcleo de Investigação em Políticas Económicas e Empresariais da Universidade do Minho. “Uma boa integração, por exemplo, intermodal, é essencial para termos uma cidade  circular.  No sentido em que minimiza tempo de deslocação, minimiza impactos ambientais. Tudo isso são fugas deste sistema que podemos recuperar”, exemplifica.

Apesar de haver projetos de circularidade nas cidades portuguesas, falta ainda potenciar escalas, fazendo um aproveitamento mais racional dos recursos. “Há muitas coisas a serem feitas. Padecem do mal de ter pouca escala e ou não estarem integradas em coisas mais sistemáticas. Parece-me que no que diz respeito às águas, no que diz respeito aos resíduos, o país trabalha muito para metas e ainda muito pouco para alteração da filosofia  dos sistemas. E isso implica mudar modelos de negócio, mudar formas de organizar as atividades”, sublinha Lígia Pinto.

E não está sozinha. “Não temos em Portugal, quer a nível central, quer a nível dos municípios, dos sistemas de gestão,  uma visão de como trabalhar para a circularidade.  Fazem-se algumas coisas aqui e ali, projetos que muitas vezes são começados, como por exemplo os repair cafes, mas depois muda a cor política da câmara ou há alguma alteração e deixam de apoiar esses projetos”, lamenta Susana Fonseca. “ Não se criam circuitos, hábitos ou infraestruturas que permitam a projetos que promovem a circularidade perdurar no tempo, entranharem-se no tecido social”, indica a ambientalista.

“Não estamos a fazer muito, mas também não é que os nossos vizinhos estejam a fazer muito mais. Há bons exemplos de ações de circularidade nas cidades, mas  podiam estar integradas numa estratégia mais global, mais integrada”, refere Lígia Pinto, também presidente da Associação Portuguesa de Engenharia Sanitária e Ambiental, chamando a atenção para o facto de o “incentivo e as métricas europeias e internacionais se pautarem pelo resultado final e ainda muito pouco por via do processo”.

Área das embalagens de plástico é um desastre

O maior desafio da circularidade é tratar dos resíduos descartados pela economia linear. Só pela diminuição da necessidade de recursos naturais de entrada é possível reduzir os impactos ambientais. “Isto passa por áreas sobre as quais nem o Governo nem grande parte das empresas que estão neste momento no mercado estão interessadas: as áreas da redução e da reutilização”, sentencia Susana Fonseca. “A reciclagem permite, de facto, a integração dos materiais da economia,  o que é muito bom e faz parte da economia circular,  mas é insuficiente. A reciclagem tem imensas dificuldades para dar resposta a muitos daqueles produtos que estamos a pôr no mercado”, argumenta a vice-presidente da Zero. “Na área das embalagens de plástico  é um desastre. Cumprimos, mas a meta que cumprimos é de 36%. Ou seja, 64% andam a monte, não estão a ser aproveitados e há grandes dificuldades”, explica.

António Nogueira Leite, professor catedrático Nova School of Business & Economics, concorda com a necessidade de impulsionar a economia circular. “É preocupante, porque não basta estarmos dentro dos objetivos no que respeita às embalagens, porque isso é uma pequena parte do que temos que reciclar para aumentar o grau de circularidade”, afirma. “O conjunto do sistema precisa de um impulso grande neste momento e tem muito a ver, não só com essa capacidade, como com o facto de que estamos a utilizar demasiado os aterros”, acrescenta.

Para haver circularidade nas cidades é preciso um investimento grande por parte das empresas e das entidades públicas, alerta aquele professor universitário. “A capacidade que as empresas têm de, devidamente incentivadas, inovar vai ser crucial. Assim como o trabalho em rede com as universidades e com os centros de investigação”, sublinha. “Muitas das reutilizações não são feitas, também porque não há capacidade tecnológica de reutilizar numa nova produção”, conclui António Nogueira Leite.

Planos locais dinamizam circularidade

Iniciativa Nacional Cidades Circulares (InC2) apresentou, no final do mês de outubro de 2023, 32 Planos Locais de Ação Integrada para a Economia Circular, elaborados por 28 municípios no âmbito da R2CS – Rede Circular para a Construção SustentávelCircularNet – Plataforma para a Circularidade; RurbanLink – Ligações Circulares entre Áreas Urbanas e RuraisCApt² – Circularidade da Água Por todos e Para todos. “Tratou-se de uma iniciativa de capacitação, de aprendizagem e de implementação de processos colaborativos que resultaram muito bem e cujo trabalho é bem mais que os diferentes planos e projetos realizados”, disse Fernanda Couto, diretora-geral do Território, na apresentação dos resultados da iniciativa. A Direção-Geral do Território (DGT), que coordenou o programa, irá monitorizar a concretização dos 32 planos locais para dinamizar a circularidade.

De acordo com o ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, a Iniciativa das Cidades Circulares, programa da tutela operacionalizado pela DGT, orienta-se exatamente para apoiar e capacitar os municípios na transição rumo a uma economia mais circular. “É fundamental integrar princípios de economia circular nas nossas atividades. Só assim vamos poupar recursos, valorizar o território, assegurar as condições para a redução das emissões e promover o sequestro de carbono que necessitamos. As cidades são peças fundamentais para superarmos os desafios ambientais que enfrentamos”, alertou Duarte Cordeiro. “Temos de ser mais eficientes, temos de reduzir consumos na energia, nos materiais, na água e temos de fazer valores absolutos”, considerou o governante.

“A circularidade atinge-se com a cooperação entre as cidades, atribuindo preferência a cadeias de produção e consumo mais próximas e sustentáveis. É determinante definir esta tal rede de cidades circulares, que depois se pode complementar em esforços, pode-se complementar em políticas de cooperação e não necessariamente de competição”, estabeleceu o ministro. “Há aqui um potencial enorme de somar objetivos entre as várias cidades do nosso país”, acrescentou Duarte Cordeiro.

A Declaração Europeia das Cidades Circulares dá corpo a esse compromisso e garante que as cidades signatárias partilham uma visão comum e atuam em conjunto com o objetivo de atingir a circularidade, disse o ministro. Duarte Cordeiro recordou Guimarães, recentemente finalista da Capital Europeia Verde, como a primeira urbe portuguesa a assinar o documento. Portugal conta com 13 cidades signatárias, sendo o país com mais cidades associadas à declaração (Águeda, Albergaria-a-Velha, Braga, Évora, Guimarães, Loures, Mangualde, Matosinhos, Mealhada, Melgaço, Porto, Torres Vedras e Valongo).

O novo plano de ação para a economia circular será apresentado até ao final do primeiro trimestre deste ano, “com objetivos renovados e mais ambições”, anunciou, ainda, o ministro.

Duarte Cordeiro considerou a reutilização da água como uma oportunidade para a promoção do uso sustentável dos recursos hídricos e para a adaptação às alterações climáticas. “Vivemos fenómenos intensos, de seca e escassez, que nos atingem de forma muito concreta algumas regiões do país. Só para dar um exemplo, no Algarve chove abaixo da média histórica há nove anos seguidos”, lembrou o governante.  “A reutilização da água é determinante e minimiza os efeitos da diminuição das disponibilidades hídricas”, acrescentou.

Responsabilidade dos cidadãos

Rita Sousa, professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e investigadora do Núcleo de Investigação em Políticas Económicas e Empresariais, lembra que apesar de haver um capítulo inteiro sobre a circularidade  no roteiro para a descarbonizaçao do país, para 2050, é difícil de aferir o grau de concretização. “É quase que uma malha transversal que abrange todas as outras iniciativas Agora, a concretização é muito difícil. É um tópico muito difícil de quantificar”, disse.

A investigadora, que recentemente coordenou o projeto ClicTour, sobre as áreas protegidas do Norte, considera incontornável a alteração da forma de pensar e de utilizar o que cada pessoa compra para usar. “Os próprios cidadãos têm de começar a fazer escolhas por objetos com produtos com maior durabilidade”, alerta Rita Sousa, lembrando como começam a aumentar os negócios de reparação de equipamentos elétricos e eletrónicos, desaparecidos  há anos das cidades.

Lígia Pinto recordou na conversa com a “Smart Cities” uma aula que deu sobre economia do ambiente: “Um bocadinho motivada pela necessidade histórica da economia do ambiente e estava a referir-me para a necessidade dos grupos, das pessoas, das instituições, olharem e  perceberem o que é que podem fazer”.

“Há uma tendência muito forte de olhar para o Governo, para a União Europeia, para o CEO da instituição e dizer: ‘eles é que têm de dizer o que temos de fazer’.  É um bocadinho esta lógica do domínio da política”, partilhou a docente do Minho.

“Muitas das dimensões da circularidade dependem de casos em particular, por vezes a solução não está na política nacional. A solução está nos agentes olharem uns para os outros e perceberem como podem integrar-se e ter uma solução mais cooperativa entre eles”, acrescentou Lígia Pinto.

Chamando a atenção para a lotação dos aterros e para a necessidade de encontrar soluções para o tratamento e reaproveitamento dos resíduos, António Nogueira Leite coloca também o sublinhado na ação individual.  “Temos de estar organizados numa forma de recolha em que o próprio cidadão é incentivado, mais do que agora, para ser uma parte importante do processo de circularidade”, estima o professor catedrático. “Não há incentivos,  há pessoas que são bem comportadas, porque têm espírito cívico, educação, formação e têm o desejo de contribuir para uma sociedade mais verde, mas há outros que são os ‘freeriders’ do sistema”, disse, destacando a importância de haver  políticas muito mais dirigidas às famílias, para pagarem em função dos resíduos que produzem. “Pagamos todos o mesmo dinheiro, contribuamos muito ou pouco para o sistema. Precisamos ter sistemas inteligentes que, através de mecanismos de preços e com o apoio da digitalização, faça com que todos os intervenientes, começando nas famílias,  tenham muito mais incentivo a participar”, concluiu aquele professor da Nova School of Business & Economics.


Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 41 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2023.