Pela capacidade de atuar sobre os determinantes da saúde, os municípios devem assumir a liderança na promoção das comunidades saudáveis. É este o princípio essencial do estudo “Diretrizes para a promoção de cidades saudáveis”, que junta sete municípios europeus, entre eles Coimbra, no âmbito do Instituto Virtual para a Saúde e Bem-Estar da EC2U – Campus Europeu de Cidades Universitárias.

Em entrevista à Smart Cities, as investigadoras do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT) da Universidade de Coimbra, Paula Santana e Ângela Freitas, revelam as principais conclusões do trabalho, que ouviu dezenas de stakeholders locais. 

De acordo com o estudo “Diretrizes para a promoção de cidades saudáveis”, quais são os maiores desafios que a saúde urbana enfrenta atualmente?

Os desafios que se colocam à saúde urbana são diferentes consoante os contextos geográficos, sociais, económicos e políticos dos países e cidades. No contexto europeu, e partindo do inquérito sobre ‘Promoção da Saúde e Governança’ realizado a 82 atores locais das sete cidades da Aliança EC2U – Campus Europeu de Cidades Universitárias, os desafios que reuniram maior consenso pelos participantes, em termos globais, foram o envelhecimento da população, a mobilidade, a sustentabilidade do sistema de saúde e a habitação.

Em Coimbra, cidade portuguesa no estudo, o envelhecimento foi apontado como o maior desafio da saúde urbana por 76% dos inquiridos, seguido da mobilidade, habitação e vulnerabilidade socioeconómica.

Estes desafios estão, aliás, intimamente interligados, tendo a sua abordagem que ser necessariamente integrada e intersectorial. Uma cidade, um lugar onde vive uma população cada vez mais envelhecida não tem que ser um problema. Existem, sim, desigualdades no contexto e condições em que se envelhece. As características socioeconómicas (como o nível de rendimento disponível e capacidade financeira para pagar despesas mensais, incluindo as energéticas) e as condições urbanas em que se vive e envelhece, como sejam as condições da habitação, de acessibilidade e mobilidade no espaço público, de acesso e utilização a cuidados de saúde e serviços sociais personalizados, entre outras, influenciam de forma determinante o modo como se envelhece, ou seja, com melhor ou pior saúde e bem-estar.

O desafio do envelhecimento relaciona-se com estes aspetos, sobre a lente da saúde urbana, ou seja, da preparação da cidade para oferecer uma infra-estrutura física, construída e social adaptada às necessidades e expetativas da população. Por exemplo, é premente transformar as condições de mobilidade, mudando não só o paradigma da forma como nos deslocamos (do automóvel para o transporte público e modos suaves) para reduzir a poluição e mitigar os impactos das mudanças climáticas, mas também oferecendo condições de segurança no espaço público para andar a pé. A população idosa com dificuldades de locomoção, é especialmente vulnerável nas áreas urbanas devido aos riscos associados ao trânsito, mas também nas áreas rurais, pela falta de passeios para andar a pé em segurança. Na cidade de Coimbra, por exemplo, 94% dos inquiridos classificou como intervenção prioritária na promoção do envelhecimento ativo e saudável, a eliminação de barreiras no espaço público e no edificado. Cerca de 88% indicou ainda como medidas prementes a oferta de transportes públicos acessíveis e adequados às necessidades da população e a intervenção na infraestrutura urbana para a tornar mais adequada e segura para a mobilidade ativa (a pé e de bicicleta).

Outros aspetos que se interligam com o desafio do envelhecimento são as condições sócio-económicas e habitação, nomeadamente a oferta a preços acessíveis. No contexto português, a população idosa é especialmente vulnerável. Segundo dados divulgados recentemente pela Pordata, mais de 400 mil idosos vivem em risco de pobreza em Portugal, com um máximo de 551 euros por mês. Acresce a esta realidade o facto de cerca de 20% viver sozinha e mais de metade viver em situação de pobreza energética (incapacidade para aquecer adequadamente a casa). Esta população acumula ainda uma carga de doença e de incapacidade funcional preocupante, na maioria das vezes associada a causas preveníveis e evitáveis, como a diabetes, cuja incidência e prevalência está associada a fatores de risco comportamentais (dieta, atividade física) e potencialmente modificáveis por ações e intervenções urbanas promotoras de estilos saudáveis (e.g., espaços públicos seguros e confortáveis para andar a pé, acesso a alimentos frescos, acesso a espaços verdes).

As investigadoras Paula Santana e Ângela Freitas durante a apresentação do estudo na Universidade de Coimbra. Foto: © UC / Paulo Amaral.

Neste âmbito, há ainda muito trabalho a desenvolver pelos governos locais. O estudo que realizámos vem nesse sentido, de fornecer pistas sobre como integrar a visão alargada da saúde no governo local, nos municípios, de forma sistémica e integrada.

Que diretrizes devem os municípios seguir para se tornarem cidades mais saudáveis?

Existe já muita evidência científica, relatórios técnicos e recomendações da própria Organização Mundial da Saúde sobre políticas, medidas, ações e projetos com potencial de promover cidades mais saudáveis.

O estudo que realizámos, sobre promoção da saúde, envelhecimento e governança urbana, foi baseado num inquérito aos stakeholders locais representantes de diferentes sectores (governo local, academia, cuidados de saúde e terceiro setor) e de sete cidades europeias (Coimbra, Jena, Iasi, Pavia, Poitiers, Salamanca e Turku). Tendo como quadro a diversidade de contextos (cidades do norte, centro, sul e leste europeu), uma das principais conclusões é que existem diferenças, nomeadamente nas estratégias de saúde urbana consideradas prioritárias para promover um envelhecimento ativo e saudável. O princípio da abordagem ser baseada no local, ou seja, das estratégias serem desenhadas e implementadas tendo em conta as especificidades, condições e problemas de cada território e população, é fundamental. Ainda assim, existem recomendações, diretrizes globais no sentido de colocar a saúde no centro das políticas locais e que devem orientar o planeamento local, independentemente da cidade ou município.

No nosso estudo, definimos um conjunto de 12 diretrizes em quatro domínios de orientação estratégica urbana: Abordagem, Evidência, Ação e Governança. Uma ideia transversal a todas elas é o reconhecimento do papel chave do município na promoção da saúde da população e da necessidade de estes assumirem a liderança e o compromisso com a saúde na agenda política local, mesmo sem um claro mandato formal.

Primeiro a mudança de paradigma, isto é, a forma como a saúde é considerada nas políticas locais – da visão afunilada e ‘em silo’ à visão integrada – em que a promoção da saúde deve ser um objetivo a atingir em todas as medidas e ações (Saúde em Todas as Políticas). É imperativo ultrapassar as barreiras sectoriais e reconhecer que a saúde da população é influenciada pelas condições em que as pessoas vivem, os chamados determinantes da saúde urbana, e que vão desde os aspetos sociais e económicos aos relacionados com os ambientes físico e construído, estes muito associados ao planeamento urbano da cidade. A elaboração de uma Estratégia Municipal de Saúde, como instrumento orientador das políticas municipais de gestão do território e assente nesta visão integrada e geográfica da saúde seus determinantes e respetivos impactos das políticas, é fundamental para a transformação das cidades em cidades mais saudáveis.

Outro domínio orientador das estratégias neste âmbito é a ‘Ação baseada em Evidência’. Para atuar sobre os fatores que influenciam a saúde numa cidade, os governos locais têm que conhecer a sua distribuição no território, e avaliar os respetivos impactos nos resultados em saúde. No nosso estudo, representantes dos governos locais das sete cidades reportaram que os municípios se deparam com falta de dados sobre a saúde da população e a partilha incipiente de informação entre instituições (nomeadamente dos cuidados de saúde e da academia). A construção de diagnósticos ou perfis de saúde urbana, multidimensionais e com indicadores desagregados geograficamente à escala das freguesias (e até do bairro), é um passo fundamental para a decisão informada e no estabelecimento de prioridades estratégicas de intervenção. Neste domínio, o estabelecimento dos chamados Observatórios Locais de Saúde e a utilização da informação proveniente dos Centros de Inteligência Urbana (já existentes em algumas cidades portuguesas) podem ser estratégias a seguir para a recolha de dados de base territorial que são importantes para a avaliação e monitorização da saúde urbana.

A ação orientada por evidência recolhida de forma sistemática requer, por outro lado, a capacidade estratégica do município em melhorar o sistema de governança local, o que implica reorganizar ou adaptar a própria estrutura organizacional interna (por exemplo criar um gabinete local de saúde diretamente ligado à presidência e em articulação com todos os departamentos). A melhoria dos mecanismos de comunicação e articulação entre departamentos é um fator chave para a (re)orientação estratégica da ação no sentido de melhorar de forma integrada o ambiente físico, construído e social. Sem uma governança saudável, não existe uma cidade saudável. A colaboração intersectorial e o envolvimento de todas as partes interessadas (de todos os sectores) devem ser garantidos e reforçados na elaboração de qualquer estratégia urbana. A participação dos cidadãos, por exemplo, através de processos de cocriação, deve acompanhar todo o ciclo de planeamento estratégico, desde o desenho de intervenção urbana à sua implementação.

Uma cidade saudável não é necessariamente uma cidade em que não existe doença e cidadãos com problemas de saúde, mas sim aquela em que o governo local se esforça e coloca em prática, de forma contínua, estratégias que melhorem as condições de vida dos seus residentes (ambientais, sociais, económicas, etc.) e do ecossistema urbano como um todo, garantindo a equidade na distribuição e acesso a recursos, bens, serviços e oportunidades. Este estudo sintetizou um conjunto de diretrizes globais e transversais que podem informar a forma de atuação dos municípios nesse sentido. É importante, no entanto, referir que cada cidade, cada território deve adequar as orientações à sua realidade local, olhando para as suas condições e necessidades específicas, problemas, constrangimentos e oportunidades.

É possível identificar alguns municípios portugueses que são já uma referência em matéria de saúde urbana?

Identificar ou nomear um ou mais municípios referência em saúde urbana pode ser desajustado tendo em conta que a saúde urbana integra vários aspetos relacionados com diferentes domínios de intervenção municipal.  Ou seja, um município pode ser referência num domínio ou domínios específicos mas não o ser em todas as dimensões da saúde urbana. O que verificamos é que existe um consenso alargado entre os municípios de que é urgente intervir sobre certas condições urbanas através do planeamento urbano. As questões da poluição associada às mudanças climáticas, por exemplo, exigem dos governos locais uma rápida mudança do sistema de mobilidade e transportes, mas que não pode ser feita sem uma visão integrada de outros aspetos, nomeadamente das empresas, do trabalho e emprego, da habitação, da distribuição de serviços e bens no território. E, neste âmbito, os municípios portugueses têm, a escalas e velocidades diferentes, trabalhado estes aspetos, embora muitas vezes, de forma avulsa ou isolada, melhorando determinada área específica da cidade ou apenas um domínio. Um dos princípios basais para serem referência em saúde urbana é a promoção da equidade, ou seja, garantir de forma integrada que não existem desigualdades injustas e evitáveis entre bairros, áreas geográficas e grupos populacionais. Muitas vezes, o município transforma e melhora as condições de uma área específica da cidade mas as restantes áreas continuam com problemas e não, raras vezes, até pioram essas condições, sendo até penalizadas (são exemplos as transformações ligadas à mobilidade ciclável, pedonalização de algumas vias, reabilitação urbana e consequente aumento do preço da habitação e gentrificação). A equidade e a justiça territorial são aspetos que devem estar no centro das políticas urbanas (não deixar ninguém para trás).

Ainda assim, e em termos referenciais, podemos identificar um conjunto alargado de municípios que já assumiram o compromisso de colocar a saúde no centro das suas agendas políticas locais. Referimo-nos aos municípios que são membros da Rede Portuguesa de Municípios Saudáveis (RPMS) uma associação parceira da Organização Mundial da Saúde (OMS) que, desde 1997, tem como missão apoiar a divulgação, implementação e desenvolvimento do projeto Cidades Saudáveis da OMS nos municípios membros. Neste momento, esta Rede já integra 69 municípios, onde se destacam Lisboa e Porto, mas que tem representatividade em todas as regiões, do Continente às Regiões Autónomas. Além destes municípios serem uma referência em saúde urbana, pelo inerente compromisso que assumiram de desenvolverem estratégias locais de base territorial suscetíveis de favorecer a obtenção de ganhos em saúde nas suas populações, têm ainda acesso a um conjunto de instrumentos e oportunidades de cooperação e troca de boas práticas a nível europeu que contribuem para alavancar ações inovadoras na promoção da saúde urbana.

De destacar o lançamento recente do Atlas de Municípios Saudáveis, no dia 29 de setembro de 2023 no Seixal, uma plataforma web de acesso público, assente em informação geográfica, que carateriza os municípios desta Rede num conjunto diverso de dimensões e indicadores de saúde. Na base da sua criação, esteve o objetivo de desenvolver um instrumento com potencial de informar a decisão política e ação dos municípios na promoção de lugares e cidades mais saudáveis. Esta plataforma, além de fornecer um quadro de referência de avaliação da saúde dos municípios de forma multidimensional – disponibilizando para cada município dados em 94 indicadores de resultados em saúde (mortalidade e morbilidade), de estilos de vida e comportamentos, e de determinantes urbanos (ambiente social, económico, físico, construído, segurança, cuidados de saúde), constitui uma base de mais de 800 projetos e ações municipais que, direta ou indiretamente, estão a contribuir para a melhoria das condições urbanas.

Além desta rede de municípios, os municípios portugueses, de uma forma global, estão a implementar projetos e ações urbanas inovadoras que contribuem para a melhoria da qualidade de vida urbana – mobilidade ativa e sustentável, soluções baseadas na Natureza, eficiência energética, qualidade do ar, adaptação climática, habitação, transição digital, inclusão e inovação social, etc.

Durante a apresentação do estudo lembraram que é fundamental “adequar o lugar ao homem e não o homem ao lugar”. Como conseguir que os municípios e os cidadãos compreendam e procurem respeitar este paradigma?

Hugh Barton e Catherine Tsourou, especialistas da OMS que estabeleceram os princípios e primeiras orientações do chamado planeamento urbano saudável em 2000, referem que “a cidade é muito mais do que um conjunto de edifícios, ruas e espaços, devendo ser encarada como um organismo vivo, que é influenciado e influencia a saúde dos seus habitantes”. O planeamento urbano tem como objetivo primário moldar as condições de produção, estruturação, apropriação e regulação do espaço urbano, nomeadamente das suas caraterísticas de desenho, funções económicas e sociais e localização das atividades. Considerando esta premissa, e transpondo para a promoção de lugares e cidades mais saudáveis, o planeamento urbano deve corrigir os desequilíbrios em prol da melhoria da saúde, qualidade de vida e bem-estar dos cidadãos. Ou seja, deve moldar os lugares à escala humana, ser dirigido às pessoas, atendendo às suas necessidades e resolvendo as causas dos problemas, neste caso, de saúde.

Sabemos que as principais doenças crónicas com maiores prevalências a nível global estão relacionadas com fatores de risco associados à urbanização, destacando-se a diabetes mellitus tipo 2, as doenças cardiovasculares e as doenças respiratórias. A relação mais visível é entre a poluição atmosférica nas cidades e as doenças respiratórias, sendo uma das principais causas de mortalidade prematura atualmente.

As interconexões que se estabelecem entre o planeamento urbano e os fatores de risco na saúde são complexas mas estão bem documentadas na literatura. A urbanização crescente e acelerada traduziu-se na maioria das cidades à adoção de comportamentos e estilos de vida sedentários associados à elevada dependência automóvel nas deslocações diárias. A falta de atividade física está associada à própria infraestrutura urbana que está desenhada para os veículos a motor e não promove de forma segura e confortável modos mais ativos e saudáveis, como andar a pé e de bicicleta. As distâncias tornaram-se cada vez maiores entre casa e trabalho, com as pessoas a viverem nas áreas suburbanas (onde existe habitação a preços mais acessíveis) e a estarem dependentes do automóvel ou transporte público, perdendo horas do seu dia nos movimentos pendulares, com efeitos na sua saúde física e mental. A falta de tempo e de acesso, em muitos locais, a alimentos frescos e saudáveis reflete-se por seu turno na dieta alimentar, cada vez mais baseada em produtos processados e de fácil e rápida confeção. Tudo isto reflete-se em excesso de peso e obesidade que é o principal fator de risco, por exemplo na diabetes, mas também nas doenças cardiovasculares.

Um modelo de ‘urbanismo saudável’ que tem sido amplamente divulgado e discutido é a chamada “cidade de proximidade” ou a Cidade dos 15 ou 20 minutos – preconizado pelo urbanista Carlos Moreno e já com aplicação em várias cidades europeias, de onde se destaca Paris. De facto, este e outros modelos como os “Super Quarteirões” podem alavancar transformações urbanas importantes no sentido da promoção da saúde urbana. Estas intervenções, focadas na acessibilidade, preferencialmente a pé, a serviços essenciais ao dia a dia dos cidadãos e na promoção da vida de bairro, onde o contacto com a Natureza e contacto social são alicerces, são exemplos de como o lugar pode ser moldado às necessidades humanas. No entanto, muitas destas intervenções e mudanças de paradigma causam debate e provocam descontentamento entre os cidadãos, não devendo ser implementadas pelos municípios por decreto ou não envolvendo os cidadãos. A participação pública nos processos de decisão e de planeamento urbano, principalmente quando impactam a forma de organização territorial, padrões de mobilidade e de consumo, ou seja, a vida das pessoas, deve ser garantida desde o início. E neste campo, à exceção de algumas iniciativas cidadãs que já emergem em algumas cidades portuguesas, há um longo caminho a percorrer nos nosso municípios.

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