Desde o seu surgimento, o conceito de smart city tem sido alvo de constante debate, sendo inegável a sua associação ao uso de novas tecnologias. A forma como as cidades mundiais fizeram uso dessas soluções na sua resposta à pandemia de Covid-19 é também um ponto de análise das várias interpretações da ideia de cidade inteligente.

É sabido que o conceito de smart city é polissémico, englobando conceções de cidade e projetos urbanos bastante diversos, ainda que possuam um elemento em comum: a centralidade atribuída ao papel das tecnologias digitais e ao recurso a grandes volumes de informação (big data) no planeamento, uso e gestão da cidade. Sob uma mesma designação podemos, por isso, encontrar realidades bastante distintas.

As estratégias e soluções mobilizadas para combater os efeitos de um choque externo tão intenso, súbito e inesperado como a pandemia Covid-19 permitem, no entanto, sugerir uma sistematização em torno de um número restrito de situações-tipo. Essas situações não cobrem de forma exaustiva a diversidade existente. O objetivo é identificar as que se salientam de forma distintiva através dos seus traços mais marcantes. Todas as outras cidades tenderão a ocupar uma posição intermédia entre algumas dessas situações-tipo. Trata-se, portanto, de um exercício simplificador da complexidade que se verifica no terreno. Mas ele permite passar de um registo genérico e abstrato, e por isso não raro equívoco, para um outro focado nas finalidades e visões estratégicas subjacentes às opções prevalecentes em cada uma das situações descritas de seguida.

Diferentes abordagens para colocar a smart city no combate à pandemia

A primeira situação-tipo diz respeito a cidades chinesas e foca-se no conceito de segurança interna e internacional, a qual designaremos por uma visão securitária integral. Cerca de uma década antes da emergência da Covid-19, o governo chinês tinha posto em marcha a iniciativa “Cidades Seguras” com o objetivo de garantir a segurança pública entendida em sentido amplo: segurança política, económica e social.

As cidades chinesas adotam uma visão securitária integral, na qual o conceito de smart city é colocado em prática através de um forte investimento em infraestruturas digitais, equipamentos de videovigilância e sistemas de segurança eletrónica. ©helloabc/Shutterstock.com

Este conceito abrangente de segurança incluía, por isso, aspetos tão distintos como o controlo do crime, o acesso à habitação, a gestão de tráfego, o combate à poluição ou o aumento da eficiência energética. O conceito de smart city era colocado em prática através de um forte investimento em infraestruturas digitais, equipamentos de videovigilância e sistemas de segurança eletrónica. Segundo o Institute for Security Studies (maio de 2020), a ocorrência da Covid-19 suscitou alguma reorientação e, sobretudo, o aprofundamento dessa iniciativa. Com o objetivo de controlar a incidência da pandemia, o governo chinês intensificou o desenvolvimento, sofisticação e uso de «câmaras de vigilância de inteligência artificial (IA), drones, tecnologias de reconhecimento facial, recolha e análise de big data, aplicações de rastreamento e códigos QR que associam o histórico de viagens a dados médicos», muitas vezes, com recurso a informação que as empresas privadas foram obrigadas a disponibilizar.

Complementarmente, e para combater a crise desencadeada pela pandemia, o governo definiu um pacote de medidas de estímulo à recuperação económica centrado no investimento nas chamadas novas infraestruturas: 5G, centros de big data, IA, Internet das Coisas (IoT) e a própria construção de cidades inteligentes.

A segunda situação-tipo é representada pelas cidades japonesas recentemente classificadas como “Zonas Especiais Estratégicas Nacionais” e caracteriza-se por ter um foco que poderemos designar por tecno-social. Em maio de 2020, o parlamento japonês aprovou a Iniciativa Supercidade, que coloca as novas tecnologias no centro das respostas a problemas sociais, incluindo aspetos como o envelhecimento e o despovoamento. Recorrendo a soluções de inteligência artificial e ao uso intensivo e partilhado de dados provenientes de serviços públicos e de empresas através de plataformas interconectadas, as cidades envolvidas nesta iniciativa serão alvo de um forte investimento público e privado em produtos e serviços digitalizados, em particular nos domínios da mobilidade (veículos autónomos), do ensino (à distância), da saúde (telemedicina), da prevenção de desastres (resposta rápida com base em dados em tempo real) e dos pagamentos sem dinheiro. Às autoridades urbanas, em associação com grandes empresas de âmbito nacional, cabe um papel essencial na concretização desta estratégia.

No Japão, as novas tecnologias são vistas como estando no centro das respostas a problemas sociais, incluindo aspetos como o envelhecimento e o despovoamento. ©Snowman/Shutterstock.com

A terceira situação-tipo é a de várias cidades americanas, onde a ideia de smart city se confunde parcialmente com a profusão de plataformas digitais que alimentam a expansão da designada gig economy, de que empresas como a Uber ou a Glovo são exemplos bem conhecidos. Ao contrário das duas situações anteriores, onde o estado e diversas entidades públicas detêm um papel central ao nível de conceção, regulamentação, investimento e mesmo, em alguns casos, gestão das iniciativas desenvolvidas, esta terceira situação-tipo é o resultado de múltiplas iniciativas empresariais, não coordenadas entre si e cujo sucesso (financeiro) decorre, no caso das organizações de maior dimensão, do recurso generalizado a trabalhadores independentes, temporários e indiferenciados operando num mercado pouco regulado e sob condições contratuais precárias.

O contexto de confinamento vivido durante a pandemia constituiu um poderoso estímulo à expansão de muitas destas atividades (compras online, take away, etc.) e, nesse sentido, tornou as cidades mais smart. Mas a smart city da gig economy vai muito para além destas circunstâncias particulares, sendo extensível a qualquer domínio de atividade, qualificado ou não qualificado, onde a existência de tecnologias e plataformas digitais permita criar novas formas de provisão de produtos e serviços da mais diversa natureza. Dada a ausência de intervenções públicas fortes de combate à pandemia Covid-19, a dinâmica recente destas smart cities é, sobretudo, o resultado de lógicas de mercado.

A quarta situação-tipo é a que predomina nas cidades europeias. Por comparação com as anteriores, é mais abrangente e ‘ética’, articulando-se de forma explícita com agendas ‘civilizacionais’, como a descarbonização ou a sustentabilidade, e com valores societais, como a equidade ou a inclusão. Também mobiliza um leque mais alargado de entidades (instituições públicas, empresas, organizações não-governamentais), faz um maior apelo à participação dos cidadãos e assenta em formas de governança urbana que vão para além da mera governança das tecnologias e inovações digitais.

A Covid-19 deu um novo fôlego às várias determinantes urbanas da saúde e da segurança, e colocou estas duas preocupações no centro de outras agendas, das condições de trabalho e de habitação às formas de cuidado para com os grupos mais vulneráveis, da produção de espaço público à requalificação dos transportes coletivos. Como nas situações-tipo anteriores, as tecnologias e plataformas digitais, as soluções baseadas em grandes volumes de informação e a digitalização de serviços públicos (ao cidadão) e privados (ao consumidor) ocupam uma posição relevante. Mas, neste caso, as cidades são entendidas de uma forma mais sistémica e integram cada vez mais no seu planeamento uma perspetiva coordenada dos diferentes tipos de infraestruturas (ecológicas, energéticas, de transporte e digitais) e, até com a presente pandemia, dos equipamentos de saúde conectados em rede.

Finalmente, a quinta situação-tipo encontra-se em algumas cidades de países em vias de desenvolvimento, onde a ideia de smart city corresponde, no essencial, à importação casuística e mais ou menos errática de ‘soluções inteligentes’ sem enquadramento estratégico numa visão de cidade integrada e de médio prazo. Foi o que sucedeu com o fornecimento (venda e doação), por parte de empresas chinesas de tecnologia e vigilância, de “soluções anti-pandemia” que incluíam dispositivos e serviços de âmbito diverso (IA, reconhecimento facial, robôs, drones, etc.) a cidades de países asiáticos e africanos. Mas a venda de pacotes de soluções e da própria ideia de smart city acompanhada por cursos de formação poderá dar origem, num futuro próximo, a formas mitigadas de cidades inteligentes de base tecnológica em aglomerações urbanas ainda fortemente marcadas pela informalidade e por graus elevados de exclusão social e digital.

Face a insuficiência de recursos, muitas cidades optaram por soluções low-tech no combate à pandemia, em detrimento de investimentos avultados em infraestruturas.  ©Manoej Paateel/Shutterstock.com

A estas cinco situações-tipo talvez se possa adicionar uma sexta, relativa a cidades que, dada a falta de recursos, apostam sobretudo em soluções low-tech, software e aplicações digitais em detrimentos de investimentos vultuosos em infraestruturas. É o que sucede, por exemplo, em diversas cidades da Índia e de outros países asiáticos.

As situações-tipo apresentadas correspondem a realidades que se destacam no âmbito de uma constelação dinâmica e com grande diversidade interna em termos de finalidades, protagonistas e grau de maturidade. Mas parece possível afirmar que a Covid-19 contribuiu, em geral, para acelerar a transição, já em curso, do conceito inicial de smart city centrado nas tecnologias (digitalização das cidades) para um outro centrado nas pessoas (resposta a necessidades ou problemas pré identificados).

Ao passarem a ser equacionadas de forma inequívoca como um meio e não como uma finalidade, as infraestruturas e aplicações digitais tornam-se parte integrante e indispensável de qualquer agenda urbana, independentemente do seu foco e da adjetivação utilizada: cidades sustentáveis, resilientes, saudáveis, seguras, amigas das pessoas idosas, das crianças… Se todas as cidades são smart, então, o que as distingue são as condições e oportunidades que proporcionam aos que as habitam e as procuram para trabalhar, estudar ou iniciar uma nova etapa das suas vidas. Este é, aliás, o traço distintivo da história das cidades.

 

Fotografia de destaque: ©Peeradontax/Shutterstock.com

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 30 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2021, aqui com as devidas adaptações.