Cidade do Depois é o nome de uma das secções que integra a edição de 2020 do festival de cinema Porto/Post/Doc, que decorre entre os dias 20 e 29 de Novembro em formato físico e também digital. A expressão, revela Luís Lima, um dos programadores desta secção do festival, refere-se à “cidade em suspensão”, aquela que existe sempre depois de algo, a cidade que sobrevive. Perante esta “nova e radical experiência da cidade” que a pandemia nos impôs, não há como garantir que a cidade do depois será melhor, admite o responsável, no entanto, “podemos tentar fazer com que pensar as cidades se torne algo tão intuitivo como pensar a sua própria vida”.

Qual foi a inspiração para a programação de Cidade do Depois e em que medida o momento extraordinário que vivemos interferiu com isso?

A “cidade do depois” foi uma ideia que surgiu no início de 2020. Depois de fazermos o balanço ao tema anterior transversal ao nosso festival em 2019, as identidades, estavam na mesa outras propostas que ainda derivavam dessa programação. A proposta, de ano para ano, tem vindo a associar-se a uma programação de filmes ao nosso Fórum do Real, um encontro que traz vários contributos de teóricos, artistas, académicos e realizadores. Pensar e olhar para as cidades era já uma urgência bem antes do acontecimento que ainda hoje nos assola. A questão da vida nas cidades, da história das cidades, da economia e ecologia das cidades e, claro, das cidades no cinema eram uma questão política. Agudizou-se, no entanto, a percepção de uma cidade em crise com os novos modos de vida que atravessamos desde o dia 16 de Março, em Portugal.

Juventude em Marcha · Colossal Youth Pedro Costa 2006, PT, FR, 156′, M12

A pandemia retirou-nos, ainda que temporariamente, uma das coisas mais significativas na cidade – a interacção física e social. Pode o cinema colmatar isso?

A interacção física, o afecto, a partilha e até a (in)visibilidade dos rostos anónimos trouxeram uma nova e radical experiência da cidade. Não só na prática diária de quem vive, trabalha ou atravessa as cidades, mas também nas imagens que nos entram em casa por diversas vias, televisão, redes sociais, etc. Toda esta percepção da cidade se alterou, trata-se de uma nova experiência estética e muito cinemática. Reparemos que, em termos sensoriais, desde o silêncio das ruas, provocado pela ausência de circulação automóvel, mas também à qualidade do ar, a visão de um novo céu, quase sem traços de vapor dos reactores dos aviões, [esta é] toda uma nova experiência que podemos ganhar, sem colocar este ganho numa balança com todas as graves perdas. Dito de outra maneira, esta suspensão de um quotidiano trouxe-nos um sentido de alerta bastante cinemático, quase cinematográfico.

Desde sempre, as cidades enfrentam grandes e inúmeros desafios, sendo a pandemia mais um. A que tempo se refere este depois?

A “cidade do depois” é forçosamente uma cidade relativa a algo. Não se trata de uma ideia absoluta de cidade. É a cidade em suspensão: a cidade do depois da guerra, depois das migrações, depois da massificação turística e da museificação dos centros históricos, a cidade do depois dos acidentes climatéricos, a cidade do depois dos confrontos políticos que estão de regresso às ruas. Escolher esta formulação em vez de “pós-cidade” ou “depois das cidades” é dizer que as cidades sobrevivem aos tantos fins apocalípticos repetidamente anunciados. O fim da história, o fim do humano, o fim das cidades, abrindo para o prefixo “pós”. Estou em crer que não estamos a viver em pós-cidades, mas, sim, em cidades de depois de algo, depois de muitos horrores, mas também depois de muita excitação. Ao olharmos para a cidade, devemos forçosamente olhá-la como quem abre um espaço de pensamento num fluxo contínuo, e esse é o tempo do depois.

La Jetée A Pista · The Pier, Chris Marker, 1962

A cidade do depois será uma cidade melhor ou pior? O que podemos fazer para garantir que será melhor?

Não podemos garantir nada. Podemos tentar fazer com que pensar as cidades se torne algo tão intuitivo como pensar a sua própria vida, a sua casa, a sua rua, as suas relações pessoais ou profissionais. Pensar as cidades implica uma tomada de consciência e uma responsabilidade cívica, que é, no fundo, o que significava a noção de cidadania. É uma responsabilidade individual e colectiva que nos inscreve enquanto povo.

“Pensar as cidades implica uma tomada de consciência e uma responsabilidade cívica, que é, no fundo, o que significava a noção de cidadania. É uma responsabilidade individual e colectiva que nos inscreve enquanto povo.”

Como podemos tirar ideias deste evento para sarar alguns dos danos trazidos pela Covid-19 (e não só)?

Como referi, Cidade do Depois é o tema deste ano do nosso Fórum do Real. Este encontro será repartido em três encontros, pela primeira vez, exclusivamente on-line, que designámos História(s) da Cidade, Cidades Imaginadas e Fuck de Polis. O primeiro painel, composto pela filósofa Marie-José Mondzain, a programadora Maria João Madeira, o realizador Billy Woodberry e a historiadora da arte Pascale Cassagnau, irá trazer questões que interligam a história da cidade no cinema e as problemáticas do cinema nas cidades ao longo de mais de um século. As cidades imaginadas fazem-se com a participação de uma arquitecta, Ana Aragão, um fotógrafo, André Cepeda, um escritor, Luís Carmelo, e um filósofo, Paulo Pires do Vale, que irão deambular em torno da possibilidade, de inventar e criar cidades por vir ou já aí, existentes, através de um certo autoral. O terceiro painel reúne um sociólogo, Boaventura de Sousa Santos, uma investigadora, Ana Cristina Pereira, um crítico de cinema, Roger Koza, e um realizador, João Salaviza, para reflectir sobre os maiores desafios políticos, culturais e sociais que as nossas sociedades enfrentam na actualidade, sem perder de vista a intervenção do cinema neste espaço comum. Por outro lado, o programa de cinema que apresentamos ao longo do festival traz filmes portugueses e internacionais que trazem ao ecrã a arquitectura das cidades, os excluídos ou moradores dos guetos, os movimentos migratórios e, uma vez mais, retratam as vidas nas cidades e as cidades como entidades vivas. São dez filmes – alguns clássicos do cinema, como Paris qui Dort, de René Clair, outros mais desconhecidos do grande público, como The Exiles, de Kent Mackenzie, ou ainda algumas pérolas do cinema português, como A Invenção do Amor, de António Campos, ou marcos do cinema contemporâneo como Juventude em Marcha, de Pedro Costa.

Dois Anos No Mar · Two Years at Sea, Ben Rivers, 2011

Como é que o próprio festival Porto/Post/Doc se adaptou às circunstâncias actuais?

Em Março, receámos que o festival não pudesse acontecer nas salas este ano. Mas, ao contrário de outros festivais que iriam ocorrer no Verão ou no Outono, sabíamos que teríamos uma certa margem para decidir o que estaria ao nosso alcance quando chegasse o fim do Verão. O que quisemos sempre foi garantir que existiria uma versão on-line do festival com boa parte da programação disponível, mas que também existiria nas salas, porque continuamos a acreditar e a defender a importância da sala de cinema na exibição dos nossos filmes. Assim, à medida que as limitações foram sendo impostas pelo Governo, reprogramámos os horários para sessões diárias mais intensivas, acabando por ter toda a programação prevista a acontecer em dias úteis.