A cidade das bicicletas é o título do mais recente livro de Paula Teles, engenheira civil e especialista em mobilidade urbana sustentável. Com o intuito de fazer da obra uma “gramática” para os técnicos, a autora diz que este é um manual aberto, que, através da discussão sobre o espaço da bicicleta, vai ajudar a garantir a segurança do peão.
O que a motivou a lançar A cidade das bicicletas neste fase?
Estamos a beneficiar de injecções consideráveis de financiamento de fontes diversas, nomeadamente do Portugal 2020, originando, de forma gradual, mas num curto espaço de tempo, que os municípios tenham de efectuar intervenções na rede ciclável. Se, por um lado, isto é uma boa notícia para nós, técnicos, por outro, é uma catástrofe: não há formação para o efeito, escasseiam as orientações técnicas, manuais, guiões ou outros documentos de apoio ao dimensionamento em projecto. Não existe nada que uniformize os desenhos de uma infra-estrutura de engenharia, que exige retoques de urbanismo ou arquitectura, integrada no contexto global da mobilidade. Foi daí que surgiu a ideia de trabalhar esta “tabela periódica”, que pretende ser um documento técnico orientador para todos os colegas que trabalham na área do desenho urbano e do projecto. Este foi o primeiro objectivo. Haverá, ainda, um segundo volume deste livro ao nível de investigação de boas práticas.
Como foi elaborado?
Nos últimos cinco anos, a minha equipa e eu dedicámo-nos a fazer investigação sobre as boas práticas internacionais. Fomos efectuando uma síntese de informação no escritório, trabalhando-a e percebendo como poderia ser ajustada ao nosso território, que é muito complexo, assente numa infra-estrutura rodoviária com muitos anos, e que, em muitos casos, nem passeios tem e onde as estradas se transformaram em ruas pela função e não pelo desenho urbano… Imagine-se o que é ter de adicionar a bicicleta a uma infra-estrutura que não dispõe sequer de passeios para o modo pedonal!
Havia, portanto, a necessidade de um “manual de boas práticas”?
Sim. Por todo o país vi técnicos preocupados, com muitas dúvidas, pois não dispunham de material. Apercebi-me de que era uma necessidade e penso que é muito injusto trabalharmos os assuntos, sabermos as coisas e guardarmo-las para nós. A partilha de informação é um legado que quero deixar e, graças a algum trabalho científico e muito trabalho no terreno, conseguimos desenvolver esta gramática, que, enquanto documento evolutivo e em construção permanente, poderá vir a ser revista e actualizada face, até, a novos paradigmas que venham a surgir. É um documento pioneiro em Portugal, aberto, mas, pela urgência, não poderia esperar mais para lançá-lo. Já me disseram que este livro teria sido muito importante em 2014! Realmente, desde essa altura, já se fizeram muitas ciclovias… Podia ter sido útil.
Quais os erros que se cometeram?
Temos muitas ciclovias a colocar peões em perigo e a terminarem abruptamente em cruzamentos, temos desenhos diferentes por todo o país… E não estamos só a falar da uniformização das cores mas também de dimensionamento e geometria, contudo, entendo que apenas com orientação superior se conseguirá criar a regulamentação necessária. A urgência estava neste trabalho mais técnico e que se relaciona com a aplicação, pois está a ser efectuado um grande investimento que não pode ser mal aplicado. O que aqui está é essencialmente para os técnicos que desenham as cidades.
É, acima de tudo, um guia técnico?
Para além de ser uma ferramenta, tem também uma análise muito crítica e rápida ao estado da arte da mobilidade em Portugal e à urgência de articular todos os modos de transporte, no sentido de desenhar uma cidade com mais qualidade de vida e mais saúde pública. A área de trabalho de que sempre gostei mais não é a de projecto, mas a de planeamento e a política. Por isso, como introdução, aponto aquilo que acredito que deve ser feito já ao nível do planeamento do território e da mobilidade com o objectivo de que este seja um colete salva-vidas. Esta preocupação na escala política é o segundo objectivo.
E o que tem de ser feito?
Precisamos, com muita urgência, de Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS). Vamos admitir que, nos 308 municípios, existam 20 exercícios de planos que desenvolvem um planeamento sistematizado, articulando o planeamento do território com o dos transportes, o uso do solo e as problemáticas do ambiente, segurança, etc., mas a maior parte foi realizada em épocas em que as orientações eram mais estáticas e demoradas. Basta ver que, num ano, fomos invadidos por uma micromobilidade (trotinetas) e tal nunca esteve previsto no nosso planeamento! À velocidade actual das dinâmicas, necessitamos de ter planos muito mais ágeis, documentos que possam ser estratégicos e orientadores de redes. Falamos de ciclovias, mas se, a montante, não há uma rede de ciclovias, temos um problema e corremos o risco de investir numa medida que pode ser avulsa, pois não vai parar a lado nenhum. Se a rede de ciclovia não cruzar com a dos transportes públicos, vai ser outro problema; e o mesmo acontece se esta última não cruzar com a rede dos parques de estacionamento, entre outras redes.
Antes de mais, quer-se um planeamento integrado destas várias camadas?
Essa intervenção é prioritária! Temos de aplicar fundos comunitários e executar obra, mas, ao mesmo tempo, necessitamos de reunir consenso político e técnico e efectuar um planeamento da mobilidade que integre e articule todas essas camadas. Esse documento, recomendado pela União Europeia, tem a designação de Sustainable Urban Mobility Plan (SUMP, ou PMUS em Portugal).
“Com esta gramática, o que estou a fazer é a dar espaço de debate sobre o modo pedonal, para que os peões possam ter o conforto, o espaço e a segurança de que precisam”.
Há orientações do Governo para promover a mobilidade activa, nomeadamente com a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC). Como viu essa medida?
Serei uma adepta de tudo o que o Governo lançar para a mobilidade activa – isto é, a que promove a nossa mobilidade natural e que nos permite fazer exercício físico, como o andar a pé ou de bicicleta, contudo, temos de admitir que esta estratégia teve alguns problemas no seu desenho inicial. Não obstante a estratégia inicial deter uma designação mais lata para os modos activos, o seu conteúdo era, quase em exclusivo, para o modo ciclável, pelo que esta alteração de designação veio, de alguma forma, conferir mais consentaneidade entre conteúdos e designação, não obstante se ter ignorado, mais uma vez, o peão.
Isso faz sentido?
Sim, se estivermos a falar da mobilidade activa de forma geral e não particularizarmos apenas o modo ciclável. Sabemos que o problema maior está nos centros das cidades, então, é aí que o temos de resolver primeiro. O quadro comunitário e os seus eixos de investimento apontam para a mobilidade do dia-a-dia. Nos próximos anos, o desafio prioritário é fazer com que haja a mudança do andar de carro para os modos sustentáveis de deslocação, nomeadamente os transportes públicos, o andar a pé e de bicicleta, por exemplo, num sistema de partilha para a última parte do percurso. A minha preocupação é a utilização da bicicleta e do andar a pé nas deslocações do quotidiano. São essas que vão fazer a diferença.
Entretanto, o que se deve fazer para a mobilidade activa?
O que se pede é que haja definitivamente um plano estratégico para a mobilidade activa, e essa tem a ver, também, com os modos pedonais. Queremos a mobilidade que permite às pessoas tirar a “ferrugem” do seu organismo e fazer da cidade um ginásio ao ar livre.
O peão continua esquecido?
Continua e, ao falar da ciclovia, o que pretendo é que se faça uma discussão sobre o modo pedonal. Com esta gramática, o que estou a fazer é a dar espaço de debate sobre o modo pedonal, para que os peões possam ter o conforto, o espaço e a segurança de que precisam. Todo este trabalho de precisão, de pequena escala, resulta daquilo que tem pautado o meu percurso: garantir a segurança, conforto e inclusão dos peões, em particular dos mais vulneráveis – os mais idosos, pessoas com deficiência, crianças…
Ciclistas e peões já reivindicam o seu espaço?
Todos estão a reclamar o seu direito à cidade. O peão sabe que o tem e o ciclista já compreendeu que tem direito a andar na estrada, ignora as buzinadelas e não fica constrangido se obriga os automóveis a circular a velocidades mais moderadas em meio urbano. Os automobilistas é que ainda não entenderam que já não estamos na era dos carros e, embora a cidade não esteja ainda desenhada para os retirar de lá, já começa a haver movimentos nesse sentido, com sinaléticas, medidas de acupuntura urbana que surgem do planeamento à escala superior, ou os próprios cidadãos a solicitarem, muitas vezes em sede de orçamentos participativos, que uma parte do investimento municipal seja em projectos de mobilidade ciclável… Isso é óptimo! Mas, para que tudo funcione e as pessoas tenham opções e liberdade de escolha, é preciso um maestro. E quem é este maestro? O PMUS, um documento sempre dinâmico, capaz de sustentar a mobilidade e incluir os novos desafios das cidades sustentáveis e o direito das pessoas de circularem, de forma livre, no território. O Governo vai ter de exigir e os municípios vão ter de fazer!