A cidadania climática é, desde 1 de Fevereiro, um dever de todos os portugueses. A entrada em vigor da Lei de Bases para o Clima estabelece o enquadramento legal necessário para que se criem condições políticas de resposta à emergência que a humanidade está já a enfrentar. As cidades lideram as tropas nesta batalha global, mas é na acção local que se trava o combate decisivo.
O mês é Fevereiro, pleno Inverno em Portugal. Apesar do frio, o sol tem trazido dias bonitos que nos fazem querer estar no exterior. Há semanas que não chove e a falta de água reflecte-se já numa seca que afecta todo o país. “Sabemos que isto não é normal, mas como vamos sensibilizar as pessoas para algo que até sabe bem?” A pergunta, feita em jeito de exclamação por Joaquim Ramos Pinto, investigador e presidente da ASPEA – Associação Portuguesa para a Educação Ambiental, é também uma constatação de que os efeitos da crise climática estão “ainda longe” da consciência da generalidade das pessoas. No entanto, é evidente que começam já a estar demasiado perto das suas vidas.
O aumento da frequência e intensidade dos riscos climáticos em toda a Europa é confirmado por um relatório recente da Agência Europeia para o Ambiente, que atribui a “responsabilidade inegável” às mudanças climáticas provocadas pelas actividades humanas. Em Portugal, a situação de emergência climática foi oficialmente reconhecida, com a entrada em vigor da Lei de Bases do Clima, também em Fevereiro. O documento é determinante para aquilo que serão as orientações políticas nacionais em matéria de clima, assim como para garantir que a acção climática se dá pela mão de todos – desde o Estado e todo o sector público, às empresas, entidades da sociedade civil e cidadão comum.
Em teoria, a função dos municípios é, aqui, acrescida ou não fosse o papel central das áreas urbanas nesta matéria amplamente reconhecido – por concentrarem um maior número de pessoas, é a elas que cabem as maiores fatias de recursos consumidos e de gases com efeito de estufa emitidos. São também elas as mais vulneráveis aos efeitos das alterações climáticas e, paradoxalmente, são as cidades que detêm a chave para a inovação e a mudança que nos vão permitir conciliar a prosperidade civilizacional com o equilíbrio sustentável do planeta.
O grande desafio consiste, agora, em desbloquear este potencial. Sabendo que a necessidade de medidas de mitigação e de adaptação que desacelerem esta emergência é já um dado adquirido, a acção climática passa também por uma mudança de comportamentos. Sobre isso, os especialistas com quem falámos são unânimes: a mudança não se faz apenas por decreto; há que abrir caminho para um novo modelo de governança no qual o envolvimento e a participação das pessoas são condições sine qua non.
Alerta: já estamos em crise!
Quando falamos em acção climática, adaptação e mitigação são ideias fundamentais, mas não são as únicas. “Além disso, vamos ter de nos preocupar com o conceito build back better, ou seja, tornar os territórios mais resilientes”, avança Jorge Cristino. Para o autor do livro A Missão das Cidades no Combate às Alterações Climáticas, estamos numa situação em que “vamos continuar a ter catástrofe e eventos climáticos extremos” e, por isso, precisamos de “cidades preparadas para recuperar rapidamente”.
Porém, fomentar essa resiliência exige, antes de mais, percepção de risco, algo que, segundo o autor, está pouco trabalhado no país. “Temos de ter essa cultura de risco nos municípios” – juntando, por exemplo, as áreas de Ambiente e Protecção Civil –, “mas temos também de transmiti-la à sociedade”, sugere, lembrando o Quadro de Sendai, o documento das Nações Unidas que encaminha no sentido de uma governança multinível para a prevenção e redução do risco de catástrofes.
A nossa relação com o risco é algo que, também para Joaquim Ramos Pinto, merece reflexão. O mesmo acontece com a própria adaptação, para a qual “não basta encontrar as melhores soluções; é preciso repensar as formas de a fazer”. Para explicar a ideia, o presidente da ASPEA recorre ao exemplo de comunidades do litoral que poderão ter de ser deslocadas em resultado da subida do nível do mar – uma mudança que, se não for planeada, pode trazer muitos problemas, alerta. “Podemos criar um conflito entre as expectativas destas pessoas e o que vai ser a realidade. Isto tem de ser preparado em conjunto e, aí, entramos na elaboração de políticas [para os efeitos da crise climática] com o envolvimento das pessoas.”
Mas esta precaução não se aplica apenas a exemplos extremos, como é caso do deslocamento de comunidades; é também visível quando falamos na mudança para estilos de vida e comportamentos mais sustentáveis, diz o investigador. Mais uma vez, sensibilizar para a urgência da mudança exige investir na percepção de risco e fazer com que as pessoas sintam que estão já a viver a crise climática.
“VAMOS CUIDAR DO PLANETA”
Projecto desenvolvido pela ASPEA, com o apoio do EEA Grants, e que incentiva os jovens a olhar para o seu município e a debater as suas preocupações e ideias. Pretende-se também que estes jovens conversem com especialistas e que confrontem as suas perspectivas com decisores políticos locais.
“Governança integrada multinível”
No combate às alterações climáticas, aplicar a noção de governança integrada multinível ao desenvolvimento sustentável é uma das propostas que Jorge Cristino deixa às cidades. Consiste em, por um lado, “juntar todos os stakeholders e ouvir, em cada projecto e decisão, as várias visões”, de forma a alcançar uma resposta, em termos de políticas, que sirva a melhoria da qualidade de vida das pessoas e uma qualidade ambiental dos territórios; por outro, na interacção “bidireccional entre as propostas e as políticas de âmbito nacional e as decisões e os projectos a nível local, para, depois, também haver report e uma monitorização unívoca”. Desta forma, explana o especialista, é possível “desenvolver políticas e projectos que sejam sustentáveis a longo prazo e nas várias dimensões – ambiental, económica e social”.
Nesta interacção, um município pode até influenciar políticas nacionais e internacionais e ganhar visibilidade enquanto se posiciona na liderança climática e participa activamente em redes internacionais, como a C40, a ICLEI ou o Pacto dos Autarcas. Trocar experiências e servir de inspiração além-fronteiras são outras vantagens que podem advir deste modelo, que só funciona se, localmente, houver também essa interacção. “Os municípios têm de criar condições e ferramentas que permitam que as pessoas sejam ouvidas e que se obtenha a sensibilidade e as perspectivas dos vários sectores da sociedade, contribuindo, assim, para que os projectos sejam mais sustentáveis e mais bem aceites”, acrescenta.
A mensagem e os seus problemas
A Lei de Bases do Clima impõe a “cidadania climática” como dever e identifica os “sujeitos da acção climática”. A par do Estado e entidades públicas, constam nesta lista as autarquias locais e os cidadãos. O Artigo 9.º é, inclusivamente, dedicado à participação dos cidadãos, concedendo-lhes esse direito no que se refere aos processos de elaboração e revisão dos instrumentos de política climática. Adicionalmente, exige a organização de sessões de esclarecimento e de debate entre os cidadãos e os decisores políticos, e ainda a disponibilização de informação “clara, sistematizada e de consulta fácil” a todos para que tal aconteça.
Em Portugal, a iliteracia ambiental é um entrave à adopção de comportamentos mais sustentáveis, concordam os especialistas. Para Joaquim Ramos Pinto, o problema começa logo na comunicação da mensagem. “Muitas vezes, a linguagem utilizada não é entendível e as pessoas acham que é algo que não lhes toca”, aponta. “É preciso preparar técnicos e especialistas que saibam comunicar devidamente, com conhecimento científico e de forma entendível.”
Fazer chegar a mensagem às pessoas passa pela educação ambiental, que, para a ASPEA, deve ser um “processo contínuo e de envolvimento”. O responsável rejeita a eficácia das campanhas pontuais e apela a que se pense numa perspectiva de continuidade, de envolvimento das gerações (que, embora futuras, já existem no presente), e de aderência à realidade dos territórios. Esta é uma responsabilidade que, acredita, diz também respeito ao poder local e passa ainda por educar os próprios políticos.
“As decisões têm de ser rigorosas do ponto de vista técnico-científico, responsáveis, honestas e tomadas pensando em todas as pessoas e em todas as circunstâncias”, reforça. O tema está a ser abordado num dos projectos internacionais em que a ASPEA participa e que visa precisamente envolver políticos, sociedade civil e academia em propostas conjuntas de inovação nesta matéria. “Os políticos devem ter algum conhecimento sobre as temáticas ambientais no geral (…); quando as coisas correm mal, a responsabilidade não pode ser [atribuída] a uma falha de um técnico”, defende.
Drivers para a mudança
Se a crise climática só agora está a entrar nas nossas vidas, o mesmo não se pode dizer da sustentabilidade. Há 15 anos que Pedro Norton de Matos organiza o Greenfest – primeiro, em Cascais, e, mais recentemente, também em Braga –, que, mais do que um evento, “hoje é um movimento pela sustentabilidade” do qual o fundador se orgulha.
Ao longo destes anos, a sustentabilidade passou de um “nice to have” para um “must have”, com uma aceleração “enorme” nos últimos anos, em particular no mundo empresarial. “Recentemente, começou a pensar-se no triple bottom line, que passa, no fundo, por aplicar os três pilares da sustentabilidade – económica, social e ambiental –, que devem estar interligados e interdependentes”, relata.
Este interesse crescente está a evidenciar a falta de conhecimento e de talento que existe sobre o tema, que, até aqui, não fazia parte da cultura das organizações, o que está a provocar, também, uma corrida à informação. “A partir do momento em que tudo isto entra numa economia que cria valor para a sociedade e empregos verdes, a conversa muda de figura: [o movimento] passa a ser economicista na acepção tradicional do termo. Aí, deixa de ser uma moda e passa a ser algo imparável”, constata.
Consumidores mais conscientes, marcas que dão o exemplo e criam um efeito multiplicador e um enquadramento regulatório que orienta para a mudança foram, segundo o responsável, as forças que têm ajudado a acelerar o processo no sector privado. E no público? Será possível estabelecer uma analogia entre “empresas/consumidores” e “municípios/cidadãos”? Pedro Norton de Matos acredita que sim. “Aplicar ferramentas de gestão das empresas também na coisa pública permitiria um enorme salto”, refere, mas aproveitar a escala de proximidade, por exemplo, das cerca de três mil juntas de freguesia existentes colocaria o país “no topo dos bons exemplos”.
“Se cada uma adoptasse regras ou comportamentos em prol da sustentabilidade nos mais diferentes domínios e de acordo com as especificidades do seu território – bastava, por exemplo, [no cumprimento de] três Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável –, tal teria um efeito de alavanca”, que se faria sentir também em matéria de acção climática.
CIDADANIA CLIMÁTICA
“A cidadania climática consiste no dever de contribuir para a salvaguarda do equilíbrio climático, cabendo ao Estado promovê-la nos planos político, técnico, cultural, educativo, económico e jurídico.”
(Fonte: Lei de Bases do Clima)
O pau e a cenoura
De modo a incentivar os seus cidadãos a participar na acção climática, os municípios podem adoptar medidas de reforço positivo (bónus, desconto, prémio, etc.) ou negativo (taxa, penalização, etc.). “Em linguagem comum, é o pau e a cenoura”, graceja Pedro Norton de Matos, que se diz a favor da discriminação positiva, embora reconheça que ambas funcionam.
O gestor destaca também como a digitalização, aliada a estratégias de gamificação, criou soluções interessantes para induzir comportamentos em prol da sustentabilidade, mas não deixa de lembrar que o melhor incentivo possível é um contexto que permita optar por comportamentos mais sustentáveis – como, por exemplo, ter uma boa rede de transportes públicos.
Projectos como os mercados locais de carbono ou as moedas locais (se orientadas para a sustentabilidade) também entram neste pacote e os seus efeitos reflectem-se, acima de tudo, em termos de consciencialização das pessoas, funcionando melhor do que o “folheto típico”, diz Pedro Martins Barata, partner da consultora Get2C. “Motivam o sentido de comunidade, aumentam o envolvimento, a participação e efectivamente ajudam a reduzir emissões”, complementa o especialista.
A cenoura não funciona apenas para os cidadãos; também pode existir para os municípios. A proposta é de Jorge Cristino e consiste na introdução, ao nível do Orçamento de Estado, de um indicador ambiental que, ao medir a performance das cidades, possa dar um factor de discriminação positiva, como a isenção de uma taxa ou um financiamento suplementar, às que tiverem melhores resultados.
Responsabilidade partilhada
Informar e educar as pessoas sobre a acção climática é importante, mas, se queremos uma mudança efectiva, o verbo é “envolver”. Quando as questões são sentidas e interiorizadas pelos cidadãos, estes passam a ser “agentes de mudança”, refere o responsável pelo Greenfest. “O envolvimento traz assimilação.”
É também desta forma que, para Joaquim Ramos Pinto, será possível passar da responsabilidade individual ao compromisso colectivo – “Toda a comunidade tem de ter informação, ser chamada a envolver-se nos processos de construção das políticas locais, para que seja efectivamente um compromisso colectivo.”
O facto de Portugal ter ainda caminho a percorrer no que se refere à cultura de participação cidadã na vida política é inegável, e começa logo pelos números de abstenção registados em qualquer acto eleitoral. Nos seus mais de 20 anos de experiência em política climática, Pedro Martins Barata aprendeu que, nesta matéria (e não só), um cidadão comum pode aspirar a muito mais do que o mero exercício de voto. Trata-se, aliás, de uma “responsabilidade”, diz o especialista, cujo currículo inclui a coordenação do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050.
“Temos a ideia de que, no esquema de resolução dos problemas das cidades, é ao governo local que compete a responsabilidade de ser o actor principal. Seria interessante retirar-lhe essa unicidade da responsabilidade e afirmar a ideia de que também os cidadãos são actores”, propõe. Existem já alguns exemplos em que essa co-responsabilização é testada – caso das comunidades de energia renovável (CER), das hortas comunitárias e até dos orçamentos participativos. “Fazem parte de um conjunto de modernizações do que deveria ser o processo decisório a nível local, mas que ainda não está numa fase tão avançada dessa delegação de poderes”, sublinha.
Para Pedro Martins Barata, proporcionar esta responsabilidade partilhada neste tipo de projectos, como as CER ou as hortas comunitárias, é um dos principais contributos que o poder local poderá dar para incentivar à acção climática a nível local, mas esta é uma engrenagem que falta olear. Para que seja bem-sucedida, é preciso que as coisas realmente funcionem e que haja, também da parte do poder local, a capacidade de delegar nas comunidades estas responsabilidades. “Este tipo de projectos rompe com a forma de pensar tradicional de quem já tem essa incumbência (…), implica uma mudança cultural na [forma] como a administração local, em particular, e a central olham para o cidadão”, diz.
Também do lado do cidadão há que haver uma mudança que não passa só por participar mais vezes. [Ao participar nestes projectos comunitários] “Trata-se de fazer parte de uma solução mais altruísta (…); é preciso uma alteração do chip mental do cidadão, que tem de passar a pensar que, algumas vezes, pode não usufruir directamente [do benefício], mas, ainda assim, [o projecto] interessa-lhe porque é um bem do qual quer que a comunidade usufrua”, exemplifica. Depois disso, é uma “questão de habituação” e, “quando as pessoas perceberem que não estão a ser trazidas para o processo apenas para enfeite, mas porque a sua voz tem algum impacto, as pessoas começam a acreditar neste tipo de mecanismos”, conclui.
Defensor de que a participação tem de ser, por si, um processo educativo, Joaquim Ramos Pinto considera que “tem de haver processos que levem as pessoas a participar e que estas sintam que, ao fazê-lo, estão a participar para o bem comum”. Estes modelos de participação tornam o processo mais moroso, admite o investigador, mas é “apenas numa primeira fase, em que as pessoas têm de aprender, têm de se preparar para defender ideias e argumentar”.
A par da falta da “educação para a participação”, o presidente da ASPEA condena algumas práticas que prejudicam o processo e com as quais é preciso acabar, tais como a divulgação dos momentos participativos com “publicações nos dias em que o jornal é menos lido, na página menos lida e no cantinho inferior menos lido”, ou a definição de prazos curtos de participação e, muitas vezes, em períodos de férias. “Objectivamente, isto é não querer a participação das pessoas”, denuncia.
Por se tratar de um processo de aprendizagem, Joaquim Ramos Pinto acredita que a participação e o envolvimento na construção de soluções de adaptação à crise climática vão, “por si só”, educar as pessoas a ter determinados comportamentos, uma vez que já adquiriram competências e ferramentas para o efeito. Os resultados começarão, depois, a aparecer nas decisões do dia-a-dia de cada um e, para Pedro Norton de Matos, é aí que está toda a diferença.
“Cada um de nós, cidadãos comuns, no seu dia-a-dia, tem n momentos de verdade em relação à sustentabilidade. Portanto, sem entrar em fundamentalismos, podemos repensar alguns dos comportamentos que temos, e isso terá um efeito multiplicador – uma pessoa, uma família, uma comunidade, uma cidade”, alerta. Há muito a ganhar, acrescenta o porta-voz da ASPEA: “uma sociedade ambientalmente mais responsável, socialmente mais justa; e, ao termos isto, temos contributos que nos ajudarão, individualmente, a ser mais felizes”.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 34 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2022, aqui com as devidas adaptações.