Mais de 44% do território nacional, ou seja, quase 4 milhões de hectares, distribuídos por 12 distritos, já estão cobertos pelo Ciclope, um sistema de videovigilância totalmente português que permite detectar e monitorizar incêndios em tempo real.
Desenvolvido pelo INOV (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores Inovação), é composto por um conjunto de torres de vigilância e aquisição de dados – nesta altura são já mais de 140 em todo o país – que fornecem informação preciosa para o combate aos incêndios, como o surgimento de colunas de fumo, chamas ou pontos quentes. Estes dados são enviados para cerca de meia centena de Centros de Controlo e Gestão, onde as diversas autoridades têm acesso à localização precisa dos incidentes (graças a um streaming de vídeo georreferenciado) e a outros elementos essenciais para a tomada de decisão.
“O facto de fornecer uma imagem com movimento, em tempo real, possibilita aos operacionais extrair informação muito crítica e instantânea de caracterização, não só do início da ocorrência, mas também da sua evolução ao longo do tempo, permitindo ajustar os meios de combate”, explica Luís Silva, diretor da Área de Monitorização Remota e Apoio à Decisão no INOV, em entrevista à Smart Cities. Para ele “uma imagem vale mesmo mais mil palavras”, uma vez que, neste caso, consegue ser mais credível e precisa do que qualquer descrição verbal recebida, independentemente de quem a fornece.
O responsável pelo projecto acrescenta que “um sistema Ciclope engloba, normalmente, vários municípios, tipicamente na dimensão de um distrito ou de uma Comunidade Intermunicipal (CIM), que abrange largas dezenas de quilómetros, onde um grupo de cinco, seis, dez ou vinte câmaras conseguem cobrir de uma forma muito razoável a totalidade do território em questão”.
O primeiro impulso à ferramenta foi dado, precisamente, por alguns municípios, como Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Oleiros ou Sertã, que começaram por recorrer a ela através de verbas próprias. Depois, os bons resultados incentivaram outros a seguir o exemplo, mas agrupados em comunidades intermunicipais, de modo a rentabilizarem recursos e a aproveitarem os fundos europeus do Portugal 2020. Juntas, as várias autarquias assumem, assim, um papel essencial em todo o processo, mesmo que a gestão operacional do sistema esteja a cargo de entidades nacionais, como a GNR e a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC). Ainda assim, explica Luís Silva, “é sempre responsabilidade do município ou da Comunidade Intermunicipal, neste caso, de garantir que as forças de segurança têm nos seus territórios as ferramentas adequadas para poder responder da melhor forma possível às suas necessidades territoriais”.
A CIM do Cávado é a mais recente organização a recorrer ao sistema, depois da instalação de quatro torres de videovigilância (duas já em funcionamento e as restantes ao final do mês de Agosto), bem como dos diversos equipamentos de visualização e operacionalização, localizados nos centros de Gestão e Controlo da GNR – Comando Territorial de Braga e Comando Sub-Regional de Operações de Socorro do Cávado. No final desta fase, cerca de 69% do território do Cávado estará coberta pelo Ciclope.
Incêndios com e sem Ciclope: dois exemplos recentes
O distrito de Braga juntou-se aos outros 11 que já utilizavam o sistema, a maioria nas regiões Norte e Centro do país: Bragança, Porto, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Portalegre, Aveiro, Coimbra, Santarém, Lisboa e Setúbal. Os responsáveis pela ferramenta acreditam que ela também será bastante útil no resto do país, nomeadamente no litoral alentejano e no Algarve, precisamente as zonas que, este ano, tiveram o maior incêndio do país. Sendo assim, levanta-se a questão: se o Ciclope já estivesse instalado nestas regiões, o incêndio ganharia a mesma dimensão? Para Luís Silva, “qualquer incêndio que não tenha uma ferramenta deste género será muito mais difícil extinguir da forma mais eficiente possível”. Sem ele “é o desconhecimento”, já que “a gestão ou é feita com as pessoas que estão no terreno, com uma visão muito limitada, ou então terá de haver alguém constantemente a sobrevoar o terreno, com custos operacionais e pessoas envolvidas de uma forma muito significativa”.
Mesmo assim, o outro grande incêndio do ano aconteceu numa região – Castelo Branco – onde o sistema já está operacional há muito tempo. Luís Silva defende que esse facto não expõe qualquer limitação da ferramenta, antes pelo contrário: “Se não tivéssemos o Ciclope na zona de Castelo Branco ele seria dramaticamente maior. Potencialmente tão grande como os incêndios de Pedrogão Grande ou de Oliveira do Hospital, em 2017, onde efectivamente também não existia uma ferramenta deste género”. “Ainda assim, o facto de todas as imagens adquirias serem gravadas, permitindo uma análise posterior, possibilita que estas passem a ser um elemento crítico na tomada de consciência das reais motivações para a escalada um incêndio desta dimensão. Esta capacidade ganha particular relevância quando a gestão da ocorrência é condicionada por factores como a meteorologia estrema ou uma orografia muito acidentada, permitindo extrair dados determinantes na gestão de futuras situações semelhantes”, acrescenta.
Para o responsável, ter ou não ter o sistema é como “uma mudança do dia para a noite” porque “o paradigma da gestão de ocorrências muda radicalmente quando temos acesso a informação visual”. “Todo o feedback que recebemos dos operadores mostra-nos que ele é, de facto, um game-changer, ou seja, muda realmente a forma como é feita a gestão de ocorrências. Mesmo que, sendo uma ferramenta com tecnologias de ponta, também possa ter as suas falhas, como todos os equipamentos”, diz à Smart Cities.
Tecnologia inovadora com Inteligência Artificial
O Ciclope é um sistema de monitorização remota de grandes áreas, desenvolvido sobretudo para a detecção automática e monitorização de incêndios florestais, embora também possa ser útil para outros eventos, como grandes acidentes em auto-estradas ou mesmo cheias, resultantes de um fenómeno meteorológico extremo.
Em qualquer dos casos, o funcionamento resulta sempre de uma conjugação complexa de equipamentos e possibilidades integradas. A base operacional é um grupo de câmaras (de espectro visível ou espectro de infra-vermelhos), instaladas em locais privilegiados (ou mesmo drones) com um campo de visão alargado e distâncias de 15 a 25 quilómetros entre si. Estas comunicam através de uma rede de rádio com ligações ponto a ponto, para que o tráfego de cada uma seja conduzido para o centro de decisão, onde está a GNR e o Comando da Proteção Civil. “Esta rede de comunicações não tem custos operacionais, porque utiliza uma banda rádio isenta de licenciamento, com regras de utilização, mas sem custos, e que maximiza a capacidade de transporte de informação”, explica Luís Silva.
As câmaras estão também equipadas com sensores meteorológicos, que lhes permite extrair as principais variáveis de risco de incêndio, nomeadamente a temperatura, a humidade e o vento. Os dados são depois disponibilizados nos Centro de Gestão e Controlo, onde estão vários operadores com estações de comando e controlo e que acedem a um conjunto de informação integrada, como mapas, que conjugam com as imagens. Existem também diversos monitores que permitem visualizar e partilhar as imagens recebidas.
Já para garantir a capacidade de deteção automática, as imagens obtidas através das respectivas câmaras são transportadas até um data center e processadas por um conjunto de algoritmos, baseados numa sinergia entre Inteligência Artificial e heurísticas de processamento com regras previamente determinadas, aplicadas à detecção de incêndios. “Trata-se de uma combinação tecnológica ímpar, que permite ter uma regulação de capacidade de detecção versus número de falsos alertas muito acima de qualquer outra tecnologia a nível mundial”, refere o coordenador do projecto.
Tudo junto, resulta numa plataforma de software que integra inúmeros dados, permitindo disponibilizar num só interface a valiosa informação que os operadores e entidades necessitam para a detecção e monitorização dos incêndios. Sempre 24 horas por dia, 364 ou 365 dias por ano.