Carlos Bernardes, presidente da câmara municipal de Torres Vedras, faleceu ontem em sua casa, em circunstâncias ainda por apurar. A 6 de Abril, o autarca falou com a Smart Cities, numa entrevista exclusiva e que seria publicada na edição de Abril/Maio/Junho da revista, na qual o autarca fez um balanço do trabalho feito e apontou direcções para o futuro do concelho torreense, ao qual se pretendia recandidatar este ano. Face ao desaparecimento repentino de Carlos Bernardes, de 53 anos, a Smart Cities decidiu antecipar a publicação da entrevista aqui, a título póstumo.

A sustentabilidade tem sido um eixo prioritário da estratégia de Torres Vedras. Que balanço faz do trabalho feito até aqui?

É francamente positivo. Esta é uma das áreas que temos vindo a trabalhar há duas décadas. Tudo começou com a execução do nosso plano municipal de ambiente, que tinha a designação Torres Vedras 21. É dentro desse âmbito e alicerçado nesse trabalho estratégico que temos vindo a fazer a implementação da estratégia [ambiental]. Torres Vedras está hoje, com enorme orgulho, no top 3 dos municípios mais sustentáveis em Portugal, certificado pela plataforma ECOXXI, o que vem validar todo o trabalho que temos vindo a desenvolver ao nível da sustentabilidade no nosso território. Por um lado, é um motivo de orgulho, mas, por outro, é sempre uma grande responsabilidade e, portanto, é com essa responsabilidade que temos objectivos claros na área da sustentabilidade e que temos vindo a implementar os nossos projectos, que são de referência, ao longo destas duas décadas. Geralmente, na academia, fala-se nos três pilares da sustentabilidade, eu costumo dizer que, com três pés, uma cadeira não tem o equilíbrio de uma com quatro, e, por isso, falo em quatro pilares: ambiente, social, económico e o modelo de governança. É sempre esta quarta perna da “cadeira” que costumo colocar, tanto nalguns fóruns em que vou participando, como no modelo que temos vindo a implementar no município em relação a estas temáticas e ao ambiente em particular.

Está à frente da autarquia desde 2015. Quais foram os principais marcos destes dois mandatos no percurso de Torres Vedras enquanto “cidade sustentável”?

Acima de tudo, [o facto de] olharmos para as nossas comunidades e percebermos que efectivamente [este] é um território de e para as pessoas. Nessa mesma visão, algo que coloquei como prioritário após ter tomado posse como presidente da câmara municipal a 1 de Dezembro de 2015 foi o objectivo de ter todas as escolas no município com o galardão Eco-Escolas e, para mim, foi com enorme orgulho que, no ano de 2020, vimos reconhecido Torres Vedras como o município com mais Eco-Escolas do país num trabalho desenvolvido com a associação Bandeira Azul da Europa. Isso é, para mim, um marco fundamental, no sentido de podermos combater a literacia que existe no que diz respeito às temáticas do ambiente e da sustentabilidade.

Como foram desenvolvendo esse trabalho?

Temos um grande pilar que desenvolve um trabalho de extrema importância que os técnicos e toda a nossa comunidade educativa fazem a partir do Centro de Educação Ambiental e que é, também ele, um edifício com construção sustentável, certificado, ainda em fase de projecto, através de um modelo do Instituto Superior Técnico. Hoje, é um dos equipamentos municipais com mais actividade ao longo do ano e é um dos marcos mais relevantes que, ainda neste meu mandato, coloquei como objectivo e que conseguimos alcançar. A par de outros projectos que desenvolvemos e que são importantes para o território e na relação com as comunidades locais.

Tais como?

Refiro-me ao nosso trabalho no que diz respeito ao programa de sustentabilidade nas nossas cantinas e refeitórios escolares. Graças às parcerias que temos com IPSS, conseguimos diariamente produzir milhares de refeições para os nossos alunos. Recentemente, alargámos esse âmbito aos vários níveis de ensino no processo de descentralização e, agora, abrange desde o pré-escolar ao ensino secundário. Para termos a noção do impacto que tem na economia local, são cerca de quatro milhões de euros/ano só em refeições escolares produzidas único exclusivamente com os produtos locais de Torres Vedras.

Receberam um reconhecimento internacional por esse trabalho?

Sim, a par dos municípios de Sintra, Cascais, Coimbra e Braga, fomos reconhecidos como Cidade Europeia da Economia Social, no qual este projecto do programa de sustentabilidade da alimentação escolar é uma referência. É uma boa prática, um bom exemplar e é único em Portugal. Desta forma, as nossas comunidades podem envolver-se na criação de postos de trabalho associados ao projecto, que visa, também, a capacitação de pessoas qualificadas, nomeadamente nutricionistas, que definem as ementas semanais para os refeitórios escolares e, a partir daí, a confeção das refeições feita com produtos de Torres Vedras, em particular os hortícolas e biológicos. Temos esse grande potencial no território.

“Torres Vedras está hoje, com enorme orgulho, no top 3 dos municípios mais sustentáveis em Portugal, certificado pela plataforma ECOXXI, o que vem validar todo o trabalho que temos vindo a desenvolver ao nível da sustentabilidade no nosso território. Por um lado, é um motivo de orgulho, mas, por outro, é sempre uma grande responsabilidade e, portanto, é com essa responsabilidade que temos objectivos claros na área da sustentabilidade e que temos vindo a implementar os nossos projectos, que são de referência, ao longo destas duas décadas.”

O município tem sido frequentemente reconhecido a nível internacional. Os torreenses têm essa noção?

Julgo que sim, temos tido a preocupação de fazer essa divulgação. Acho que as pessoas reconhecem isso e têm orgulho em ser torreenses e de ver o trabalho reconhecido quer a nível nacional, quer internacional. O ano 2015 foi um ano para nós muito importante, na medida em que fomos considerados pela União Europeia (UE) como é um território Green Leaf, fruto também de um trabalho que tive oportunidade de desenvolver junto da UE. À época, dei o meu contributo nessa matéria, porque a UE só distinguia as grandes cidades como verdes. Nos vários fóruns em que participei, colocava-se a questão “e porque não as cidades médias?”.

E são muitas.

E vivem mais pessoas nas cidades médias, no somatório, do que nas grandes cidades. Dei o meu contributo nesses vários fóruns para que as cidades médias fossem também reconhecidas. Conseguimo-lo em 2015 e, juntamente com Mollet del Vallès, fomos uma das primeiras cidades Green Leaf na Europa. Isso foi muito gratificante e um orgulho imenso para nós. Mas não vivemos só de orgulho, há também uma grande responsabilidade perante a nossa sociedade e os nossos cidadãos.

Têm também aderido a diversos compromissos – Green City Accord, Declaração de Glasgow, entre outros.

E aderimos, na primeira hora, à Agenda Local 21, aos Compromissos de Aalborg e, mais recentemente, à Agenda 2030, para a qual estamos muito focados. Um dos objectivos é que, em 2030, consigamos antecipar a neutralidade carbónica que a Comissão Europeia aponta para 2050. Esta é uma ambição de Torres Vedras.

Como pretendem fazer isso?

Estamos a trabalhar com esse objectivo. Ao nível de produção de energia, a eólica e a instalação, agora, de um conjunto de parques solares vão dar um contributo significativo para esse desígnio. Temos o projecto Florestas nas Linhas 20.30, que tem como missão fazer a reconversão com espécies autóctones de espaços municipais que até aqui tinham plantação de eucaliptos e que vão fazer a retenção de carbono. Terminámos 2020 já com 20 mil árvores plantadas. Estes projectos vão contribuindo para que assim seja, mas temos outras iniciativas também muito ambiciosas nesse domínio. Brevemente, vai ser lançado o nosso living lab for green hydrogen.

Em que fase está esse projecto?

Já foi aprovada em reunião de câmara, por isso, está para breve. Queremos apostar nesta energia limpa. Temos um pool de um conjunto de parceiros e vamos assinar a parceria muito em breve, no sentido de que muitas dessas empresas que estão sedeadas noutros territórios possam vir para Torres Vedras. Teremos também um pacote de incentivos fiscais em vários domínios para fixar as empresas. Tudo isto contribui [para o nosso objectivo] e tem aqui um efeito de contaminação positiva junto da sociedade.

A pandemia atrapalhou estes projectos?

Eventualmente, muitos dos projectos não correram ao ritmo que gostaríamos, mas olhámos para isto de forma diferente e encontrámos oportunidades. Por exemplo, este projecto do hidrogénio surge em contexto pandémico e teve uma adesão fantástica do conjunto de parceiros. Em Maio, queremos também assinar um acordo de parceria para criar um cluster da saúde em Torres Vedras e estamos a trabalhar para criar outro na área do agroalimentar. São áreas em que nos queremos posicionar e a pandemia despertou-nos para novas situações, novos modelos de gestão e de trabalho em rede, e no qual a componente ambiental é determinante.

Quais são as ambições do município ao nível da transição digital?

Estamos a concluir, neste primeiro semestre, o nosso plano de acção Torres Vedras Smart City. Estamos a fazer todo o diagnóstico e a perspectivar um conjunto de acções para a transição digital em vários domínios, nomeadamente na mobilidade, administração pública e tudo o que tem a ver com comunicação com o cidadão, o urbanismo. Estamos a desenvolver as plataformas para que consigamos ter uma maior capacidade de resposta, em tempo útil, e que o próprio munícipe possa acompanhar, na sua casa, os processos em qualquer altura, isto também alicerçado na transparência da administração pública local.

Pretende recandidatar-se nestas autárquicas. Se não for eleito, considera que o trabalho ficou a meio?

Eu espero ser eleito pelos torreenses face ao trabalho que vamos apresentar, mas o trabalho autárquico é um trabalho que nunca está acabado. Tem essa particularidade de estar sempre em construção, queremos sempre mais e exigimos sempre mais de nós, dos concidadãos e da sociedade. Ainda para mais, estando num concelho que tem uma diversidade do ponto de vista dos recursos, quer dos naturais, quer das empresas, por exemplo, e onde esta relação entre a cidade, o campo e o Atlântico é única. Torres Vedras é um concelho com futuro e, acima de tudo, amigo do ambiente.

A ser reeleito, será essa a linha de actuação?

Sem dúvida, com todos estes projectos que referi e que terão os seus resultados nos próximos mandatos autárquicos. Temos também de ter a visão estratégica e um rumo, para que possamos deixar um legado para as gerações vindouras e possamos dar o nosso contributo enquanto autarcas para esse mesmo desígnio junto da nossa sociedade.