Numa mesma cidade, em pleno coração europeu, a capital da União Europeia coexiste com o dito “ninho de terroristas” nascido da comuna de Molenbeek. Fala-se em duas línguas oficiais, mas ouvem-se muitas mais. Por estes dias, o município prepara uma ambiciosa estratégia tecnológica smart city, enquanto admite a derrota da inclusão social. Como gerir esta manta de retalhos em forma de cidade?

No rescaldo dos atentados terroristas de Paris, a 13 de Novembro, as atenções rapidamente se viraram para um dos países vizinhos. Em Bruxelas, capital da Bélgica, uma comuna está na mira das forças de segurança e da imprensa internacional por ser um “ninho de terroristas”. Ou, dito de outro modo, é o local de origem de vários dos mentores de acções terroristas na Europa, em nome do ISIS. Numa cidade que é também sede das instituições da União Europeia (UE) – e, portanto, coração e cérebro da comunidade de 28 países –, soaram alertas sobre as desigualdades entre comunas, imigração e inclusão social.

A fractura social de Bruxelas urge ser resolvida, até para que a cidade consiga ser verdadeiramente inteligente e sustentável – a par do que já está a ser planeado em termos tecnológicos. Um Plano Director smart city está, nesse âmbito, a ser desenvolvido nos gabinetes do município de Bruxelas-capital. Vai centrar-se em temas como a desmaterialização de processos, a cobertura Wi-Fi da cidade e a disponibilização de open data como base de futuros serviços públicos e privados – mais eficientes, inteligentes e de proximidade com os cidadãos. No entanto, o estado de emergência recente na cidade, com operações policiais à caça de terroristas, funciona também como chamada de atenção para as questões sociais. Afinal, a base das cidades inteligentes são os cidadãos inteligentes (smart citizens),  como se afirma comummente nos debates internacionais sobre o tema.

Estas diferenças profundas em Bruxelas são perceptíveis à vista desarmada. No “Quarteirão Europeu”, como é chamado – muitas vezes em tom jocoso pelos locais –, sucedem-se edifícios imponentes e envidraçados. Em poucos quilómetros quadrados, ‘habitam’ aqui as sedes da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu, Conselho Europeu, Comité das Regiões, Comité Económico e Social, entre tantos outros organismos comunitários. A circular entre estas “torres”, milhares de políticos, altos-representantes e funcionários dão a Bruxelas uma multiculturalidade abonada, com dinheiro para gastar e fazer mexer a economia local.

Longe daí, à medida que nos aproximamos do centro nevrálgico da cidade e caminhamos para a “zona do Canal” que atravessa Bruxelas, a realidade é bastante diferente. Há mais pobreza, mais indigentes na rua. A sujidade é uma constante e os edifícios altivos das instituições europeias são uma espécie de miragem do outro lado da cidade. Um “outro” lado que nem sequer é assim tão distante. Saint-Josse-ten-Noode, por exemplo, fica a poucos passos da Grand Place – a praça mais emblemática de Bruxelas, repleta de turistas nos 365 dias do ano – e é a comuna mais pobre da cidade. Os seus moradores têm um rendimento médio anual de 8,242 euros, muito abaixo da média de Bruxelas-capital (13,312), e uma taxa de desemprego de 33,1%, segundo dados do gabinete de estatísticas da cidade. Molenbeek-Saint-Jean, a comuna onde, alegadamente, foram planeados os ataques de Paris, é a segunda mais pobre. Aqui, o rendimento médio é de 9,844 euros e 41,6% dos jovens com menos de 25 anos estão desempregados. A multiculturalidade é muito diferente do que se vê no “Quarteirão Europeu”. Neste último, dividido pelas comunas de Etterbeek e Ixelles, predominam imigrantes oriundos do espaço europeu dos primeiros 15 Estados-Membros, com maior poder de compra e maior escolaridade. Em Saint-Josse ou Molenbeek, ganha espaço a imigração mais pobre da África do Norte e África Subsariana, a par dos novos Estados-Membros, sobretudo Bulgária e Roménia. A densidade populacional também começa a ser um problema sério. Só em Molenbeek, há 27 mil habitantes por quilómetro quadrado, mais do que o registado em Macau.

Um mercado de inclusão social
Perante as ‘zonas difíceis’ da cidade, alguns projectos têm tentado fazer a diferença, em termos urbanísticos. Esse é o caso do Abattoir, que, em plena zona empobrecida do Canal de Bruxelas, quer dinamizar a vizinhança a partir de um mercado alimentar.
“Talvez o mercado seja hoje mais representativo do que Bruxelas é, em 2015, na sua multiculturalidade, do que são as áreas artificialmente construídas da cidade [como o ‘Quarteirão Europeu’]”, começa por afirmar Paul Thielemans, relações públicas do Abattoir. O mercado a que se refere é o Foodmet, uma zona coberta com bancas de frutas, vegetais e carne, no espaço do Abattoir (em português, matadouro) na comuna de Anderlecht. Nesta zona conhecida – e evitada pelos locais – por problemas de criminalidade e pobreza, o projecto recupera o antigo matadouro de 1900, adaptado aos dias de hoje, acrescentando novos serviços e preocupações sociais a este espaço pouco nobre da cidade. Para os próximos anos, a administração do Abattoir quer ser o motor de um novo modelo urbanístico sustentável. E, quem sabe, servir de exemplo à cidade sobre como gerir as áreas mais pobres e inseguras de Bruxelas.
O que é este Abattoir? Foi, literalmente, um dos antigos matadouros da cidade – e hoje sobrevive como o único matadouro europeu a morar no meio de  uma metrópole. Começou como uma estrutura de metal, no início do século XX, numa arquitectura típica da época, que servia de espaço ao mercado da carne em Bruxelas – rodeado de edificações onde se matavam os animais. Hoje, ganhou novos espaços e novas funcionalidades, mas continua a ser mercado alimentar (além de carne, vendem-se também frutas e produtos hortícolas) e matadouro. O Foodmet é a sua vertente mais recente, inaugurada este ano: os talhos e outras bancas de produtos alimentares, até então dinamizados num mercado exterior, passaram para um espaço coberto, onde convivem agora com restaurantes. O espaço segue as particularidades étnicas desta área urbana: nos 17 talhos existentes, a oferta é variada, adaptada aos gostos culinários no mundo árabe, africano e belga.

Contudo, o que distingue este Abattoir é, sobretudo, a sua visão urbanística abrangente. A empresa que gere o espaço desenvolveu um masterplan até 2030 que contempla não só um Abattoir mais polivalente, com novas funções e uma abertura ao público durante os sete dias da semana, mas também um maior dinamismo para a área do canal. “Queremos um novo modelo urbanístico, em que as pessoas vivam, visitem e trabalhem nesta zona”, sublinha Paul Thielemans, num tentativa de aproveitar o potencial da zona (ainda pouco desenvolvida a nível urbanístico) e “contrariando o gueto, a criminalidade e a pobreza”. Para isso, o plano engloba a participação de outras empresas e entidades adjacentes, que possam contribuir para um desenvolvimento sustentável da zona, de forma holística. É disso exemplo o projecto da entidade pública de desenvolvimento de Bruxelas, SDRB, que prevê 119 novas habitações de baixo consumo energético, ou os esforços de atracção de novas empresas para esta área.

No fundo, o Abattoir pretende afirmar-se como centro dinâmico nesta área do canal, agarrando o papel que, outrora, os mercados tiveram nas cidades, um pouco por toda a Europa. Enquanto o masterplan vai sendo concretizado – o próximo passo será instalar a maior horta urbana europeia em telhado, com estufas e produção de peixe em aquaponia, assim como um restaurante, no telhado do Foodmet –, a empresa vai dinamizando algumas acções sociais que melhorem a vida da vizinhança. Em dias de mercado, crianças e adultos são convidados a participar em actividades de alimentação saudável. À quarta-feira, o espaço funciona como centro de actividades para as crianças pobres da comuna de Anderlecht. Em preparação está também a distribuição das sobras do mercado, no domingo, para alimentar a população mais desfavorecida dos bairros em redor do Abattoir. As acções podem parecer uma gota de água nos problemas socio-económicos de Bruxelas, mas são um contributo eficaz para dar melhores condições a uma zona “esquecida pelas instituições europeias”,  nas palavras de Paul Thielemans.

Bruxelas tecnológica
Numa perspectiva de actuação mais abrangente, o município trabalha hoje em prol de “Bruxelas – smart city”, uma iniciativa que dá este ano os primeiros passos. Focada em questões tecnológicas, a abordagem parece longe dos problemas sociais que afligem a cidade. No entanto, aspectos como a melhoria de comunicações ou a plataforma open data poderão servir de base a intervenções de melhoria do espaço público ou a reforço de vigilância em certos locais. O futuro – talvez baseado nos eventos recentes na capital francesa – ditará qual o uso das tecnologias programadas para a cidade.

Para já, uma coisa é certa: o Plano Director Informático está, de momento, a ser desenvolvido, naquilo que será uma “ferramenta indispensável não só à modernização de serviços, mas à transição para uma cidade inteligente”, explica Mohamed Ouriaghli, vice-presidente de Bruxelas para as tecnologias de informação. O documento resulta das ambições da actual administração local, que tem andado em contactos com outras cidades europeias, à procura de inspiração. Um primeiro protocolo foi assinado com Paris e Montreal, sendo que “a cidade continuará os contactos internacionais, para perceber como melhorar aqui”. A cidade começou a avançar também em termos de infra-estruturas de tecnologias de informação.  Ao abrigo do projecto BRUWiFi, a cobertura Wi-Fi já chega às principais praças e edifícios públicos da cidade. Em paralelo, a plataforma Open Data da cidade foi lançada em 2014 e conta hoje com 400 conjuntos de dados. “Acredito que [uma cidade inteligente] comece por aqui, por disponibilizar conjuntos de dados a partir dos quais possam ser desenvolvidas várias aplicações”, afirma Ouriaghli. A iniciativa valeu à cidade, este ano,  uma nomeação ao prémio Belfius Smart City, que distingue os melhores projectos inteligentes em urbes belgas. Depois de uma primeira experiência num hackaton entre regiões, no qual developers puderam já construir aplicações sobre os dados abertos de Bruxelas, o município espera criar condições para novas ferramentas e serviços que beneficiem a cidade.

Com estes projectos e a apresentação do Plano Director, ainda sem data marcada, Bruxelas prepara-se para ganhar uma dimensão mais tecnológica e mais conectada. Depois disso, será esta nova Europa, nascida dos atentados de Paris, que ditará as aplicações prioritárias à infra-estrutura desenvolvida. E, também, se as questões sociais continuarão esquecidas – de geração para geração – ou se a tecnologia ajudará a gerir, de forma sustentável, as várias comunas de Bruxelas. Seja pela luta anti-terrorista, seja pela prioridade às novas tecnologias, Bruxelas vai transformar-se. Embora sem garantias que o consiga fazer a uma só voz.

Texto originalmente publicado na edição #09 da Smart Cities, aqui com as devidas adaptações.