Sobras de refeições, cascas de frutas e legumes, folhas e ervas do jardim – estas são algumas das coisas que nos habituámos a deitar no contentor indiferenciado. No entanto, estes resíduos podem ser transformados num recurso valioso para o planeta. A partir de 2024, os municípios devem assegurar a sua recolha selectiva ou separação e reciclagem na origem e alguns estão já a experimentar soluções para o fazer.

Há 21 anos, numa campanha da Sociedade Ponto Verde, os portugueses assistiram, com espanto, à facilidade com que o chimpanzé Gervásio era capaz de separar o papel, o plástico e o vidro, colocando-os no respectivo contentor para reciclagem. “Se o Gervásio consegue, você também” era a provocação deixada pelo anúncio televisivo. Os portugueses foram introduzindo estas práticas no seu quotidiano, mas ainda aquém do necessário: apesar de um crescimento substancial, em 2018, a taxa de reciclagem de resíduos urbanos nacional era de apenas 28,9%, abaixo da média europeia (47,4%). Nesse mesmo ano, a Europa elevava a fasquia e estabelecia novas metas comunitárias para a reciclagem: 55% em 2025 e 65% em 2035.

Para quem já faz a separação para reciclagem, estes números causam frustração – afinal, o que mais se pode reciclar? Ao olhar atentamente para o caixote do lixo de sua casa, a resposta salta à vista. Lá encontramos cascas de frutas e legumes que resultaram da preparação das refeições, espinhas de peixe ou ossos de carne, as sobras do almoço de há dois dias que não se comeram, a fruta que apodreceu antes de ser saboreada… A isto, podem ainda juntar-se as folhas e ramos que se apanharam no quintal ou as ervas que se retiraram da horta. Por outras palavras: biorresíduos.

Na Europa, os biorresíduos representam 34% dos resíduos urbanos, o que significa que a sua valorização vai aproximar-nos do cumprimento das metas de reciclagem. Mais importante são outros benefícios: a diminuição do desperdício alimentar, a redução da quantidade de resíduos depositados em aterro e respectivos custos, o potencial de redução de gases com efeito de estufa, de captura de carbono e de recuperação dos solos. Tudo isto sem esquecer de que a valorização dos biorresíduos representa um passo significativo rumo ao desígnio europeu de uma economia circular.

Neste momento, os Estados-Membros preparam-se para uma mudança, também imposta pela Directiva dos Resíduos de 2018, que concretiza este potencial: a partir de 1 de Janeiro de 2024, a recolha selectiva de biorresíduos ou a sua separação e reciclagem na origem passa a ser obrigatória. A responsabilidade recai nos municípios, que procuram, agora, as soluções mais eficazes para introduzir um novo fluxo, mais difícil de gerir, e aproveitar as oportunidades que representa. Projectos para a recolha selectiva porta-a-porta ou através de equipamentos de proximidade, compostagem doméstica ou comunitária surgem por todo o país, mas cujo sucesso depende da participação das pessoas e da aderência da solução à realidade do território. De ambos os lados, muitas dúvidas se colocam, mas é a experimentar que se faz caminho.

Desafios de um novo fluxo

“As autarquias estão muito curiosas sobre como será posta em prática esta obrigatoriedade e estão a avançar com projectos piloto com a atribuição, por exemplo, de pequenos baldes e sacos aos munícipes. São experiências para ver como funciona em termos de participação, da contaminação de resíduos, do tratamento”, relata Carmen Lima, coordenadora do Centro de Informação de Resíduos da Quercus. Para a especialista, não se trata de dizer que uma solução é melhor do que outra, mas de encontrar a que melhor se adapta às características do local onde a recolha será feita. “A solução ideal para um município do interior pode não o ser para outro mais urbano, onde a população tem menos hábitos de ter hortas, compra mais embalado, etc. Os hábitos de vida e até as variações na sociedade e economia vão reflectir-se na qualidade do biorresíduo”. Por esse motivo, “quando se desenha o modelo de recolha, há que ter isso em consideração”.

Gerir resíduos orgânicos é um processo complexo, por causa de escorrências e odores, implicando cuidados de higienização diferentes e a escolha de equipamentos com certas características. “O tipo de balde que se escolhe para a separação vai ter consequências. Se não for perfurado e não permitir a libertação do oxigénio, isso vai acelerar o processo de fermentação e criar odores, o que pode desmotivar a pessoa”. Há ainda que ter em conta que a periodicidade com que a população vai depositar os biorresíduos no contentor será maior e que esta prática vai implicar novos “rituais” no dia-a-dia das pessoas, incluindo uma eventual reorganização das cozinhas para acolher o novo balde.

Uma das discussões em cima da mesa e com consequências no processo prende-se com o uso ou não de saco. “Neste período inicial, alguns municípios estão a optar por recomendar que as pessoas acondicionem os biorresíduos em sacos de plásticos que são, depois, separados no processo de valorização”, explica Carmen Lima. Sem saco, há a necessidade de uma higienização mais frequente dos contentores, mas, com saco, é preciso que, no processo de valorização, em alta, haja uma triagem e um sistema “abre-sacos”, que separe o saco de plástico do biorresíduo. “Existem países onde se usam sacos biodegradáveis mas, em Portugal, não se assumiu essa opção, porque estes têm um preço significativamente superior e não havia a garantia de que o saco se degradaria no mesmo período temporal que a matéria orgânica”.

Este tema é importante pois pode afectar a qualidade do produto final resultante do tratamento dos biorresíduos. “Os destinos mais convencionais são a digestão anaeróbia [valorização energética] e a compostagem, da qual resulta um adubo que pode ser usado para agricultura, floresta ou enriquecimento de alguns solos e que segue parâmetros rigorosos”, explica a ambientalista. A presença de plásticos pode inviabilizar essas finalidades.

RESULTADO FINAL
O produto que resulta do tratamento dos biorresíduos segue padrões de qualidade elevados e rigorosos, de forma a que possa ser usado, por exemplo, na agricultura biológica ou na recuperação dos solos nacionais.

APOIAR OS MUNICÍPIOS NESTA MUDANÇA

As dúvidas sobre os biorresíduos não se esgotam no lado dos cidadãos, e é importante que também os municípios não sejam “abandonados” neste processo. “Terá também de haver, da parte do ministério do Ambiente, apoio em termos de informação e orientações aos municípios para que eles possam fazê-lo de forma mais adequada possível”, recomenda a especialista da Quercus. Entre as acções e documentos já disponíveis para o efeito, destacam-se o Programa de Apoio à Elaboração de Estudos Municipais para o Desenvolvimento de Sistemas de Recolha de Biorresíduos, o PROResíduos – Programa Avançado de Gestão Municipal de Resíduos Urbanos, o relatório Biorresíduos – Contas certas nos resíduos ou o Estudo Prévio sobre a implementação da recolha selectiva em Portugal Continental incidindo em especial sobre o fluxo dos biorresíduos.

Aplicar anos de experiência a um novo desafio

A experiência da LIPOR com a recolha selectiva de biorresíduos nos oito municípios que lhe estão associados começou em 2005, com vista a alimentar a sua central de valorização orgânica. Até 2018, tratava-se apenas de resíduos alimentares provenientes de 2227 estabelecimentos do sector HORECA e de resíduos verdes, depositados nos ecocentros ou de recolhas a pedido feitas pelos munícipes, mas, nos últimos anos, iniciativas de recolha selectiva porta-a-porta do fluxo de alimentares começaram a surgir. Entre os municípios associados, Valongo foi pioneiro; hoje, este é um sistema que chega a 14 mil habitações e que deverá ser alargado nos próximos anos.

No porta-a-porta, as iniciativas têm por base dois equipamentos – um balde de 10l, que serve de suporte à cozinha e onde se colocam os restos de preparação alimentar, e um contentor maior, de 40l, que é colocado à recolha, com periodicidade definida pelo município, variando entre duas a três vezes por semana. Uma vez que este “não é um sistema possível para todos os edifícios da área da LIPOR”, estão a ser implementados projectos de proximidade, em que um contentor de acesso condicionado serve um conjunto de prédios, cujos residentes recebem, também, o balde de suporte. Nestas duas abordagens, há mais dois pontos comuns: muita sensibilização e proibição do uso do saco plástico.

No sector não residencial, o sistema é “já robusto”: é fornecido um contentor com determinadas características, por questões de higiene, dimensionado às necessidades e manuseado por pessoas que estão já familiarizadas com o conceito. “Trata-se de um material de qualidade extraordinária que, no final, permite ter um composto muitíssimo bom. Quando vamos para o residencial, já é mais complicado”, conta o técnico Henrique Silva, sublinhando a importância da sensibilização. O tema do saco tem sido “alvo de pesquisas e experiências internas ao longo dos anos”, garante, e, até agora, as conclusões obtidas pela LIPOR vão todas no mesmo sentido: “o saco é um problema”. “Para fazer o produto, a nossa central precisa de que o material entre com um grau de qualidade acima de 95% e o saco de plástico tradicional é um problema nesse fluxo”, explica. A utilização de sacos de plástico biodegradáveis foi avaliada, mas o processo de compostagem da central da LIPOR é “relativamente rápido”, havendo partes do saco que não se decompunham, o que afecta a qualidade do produto final.

Perante alguma teimosia das pessoas em forrar o balde, para gerir a situação, a LIPOR encarregou as equipas de recolha de fazer a separação do saco e os biorresíduos, o que “tem sido uma grande ajuda”, mas, numa fase em que se pretende escalar este sistema, a solução mais eficaz, neste momento, para a entidade, está na sensibilização das pessoas. “Por enquanto, a sensibilização e participação das pessoas em não colocar o saco são fundamentais para conseguirmos produzir um composto de elevada qualidade. De outra forma, os sistemas que existem não nos permitem ter um produto no qual se diga que não há plástico e microplásticos. As pessoas podem contribuir e ter essa mais-valia”, sublinha Filipe Carneiro, gestor da divisão de apoio à implementação de projectos operacionais.

A participação da população também no que se refere à higienização dos baldes e contentores vai ser determinante para o sucesso do modelo seguido pelos municípios da LIPOR para o porta-a-porta. Já no caso dos contentores de proximidade, a missão fica ao cargo dos municípios, que, garante Henrique Silva, “estão já bastante sensibilizados para isso e a interiorizar a necessidade, precavendo-a na aquisição de viaturas e nos contratos, quando existem”. Tudo isto vai implicar custos para o município que deverão ser interiorizados no custo da recolha, mas este é um tema que escapa à LIPOR.

Uma solução que rompe com o tradicional

Foi enquanto estavam a testar um PAYT – Pay as You Throw comunitário em Carcavelos, em 2018, que a Cascais Ambiente se lembrou de, “já agora”, incorporar na iniciativa um modelo de recolha de biorresíduos diferenciada junto de 500 famílias. “Demos sacos coloridos às pessoas e um balde – que não estava previsto inicialmente, mas que acabou por ser solicitado – e pedimos-lhes que separassem as sobras de comida no saco e o colocassem no caixote do indiferenciado quando quisessem”, recorda Luís Capão, administrador da Cascais Ambiente. Dois anos depois, no âmbito do projecto, a taxa de reciclagem aumentou de 12 para 40%, mostrando que os participantes “ficaram mais preocupados não só com a comida, mas também com os restantes resíduos”.

O município prepara-se agora para alargar a iniciativa a cinco mil famílias, o que vai “aumentar dez vezes a diferenciação”, mas será também importante para a aprendizagem do projecto, no qual não está já sozinho. A Cascais, juntam-se Mafra, Oeiras e Sintra, que avançaram com projectos em moldes semelhantes, visto que têm em comum a entidade que fará o tratamento em alta, a TRATOLIXO, que se prepara para implementar um separador óptico, num investimento de cinco milhões de euros, já em concurso. Graças a este sistema, será possível separar, em alta, os sacos com biorresíduos do indiferenciado e proceder à sua valorização.

A decisão por este modelo prendeu-se com o objectivo de “simplificar a vida às pessoas, já que, quanto mais complexificado for o sistema, mais difícil é a adesão”, diz o responsável. À “flexibilidade e simplicidade” para quem separa, acrescem preocupações com a higiene urbana e o facto de ser uma solução que não implica a aquisição de novos contentores ou camiões, mais colaboradores, nem espaço público para colocar novos equipamentos. “Tradicionalmente, coloca-se o ónus todo no cidadão e na autarquia, com investimentos avultados para fazer uma recolha selectiva de algo que pode ser feito de outra forma”, defende Luís Capão, “este é um sistema à prova de crise, que não permite grandes investimentos e que, se correr mal, se reverte facilmente – mas temos a certeza de que não corre, pois temos exemplos de países que o implementaram”.

O gestor vai buscar confiança no Norte da Europa, em especial Estocolmo, onde as entidades responsáveis gerem, não quatro, mas oito fluxos de resíduos. “Podemos optimizar a solução para novos fluxos, o que representa uma oportunidade de futuro enorme. Imagine-se os benefícios de fazer isto com a roupa ou com têxteis sanitários, que ocupam 16% do nosso saco do lixo”, ilustra. E os sacos de plástico? “Podem ser aproveitados”, responde, “existe potencial [de trabalhar] com recicladores que conseguem transformar os restos de sacos em mobiliário urbano e com os quais se pode até ter um compromisso comercial, e, aí, fecha-se o ciclo”. Mas, antes disso, tem de haver “simbiose” entre quem faz a recolha e quem faz o tratamento, no sentido de “resolver o problema em conjunto, [já que] todos têm um papel crítico”.

Com isso em mente, estes municípios partilham “sucessos e dificuldades em reuniões mensais promovidas pela TRATOLIXO”, adianta Luís Capão. Neste momento, estão a fazer caracterização dos biorresíduos recolhidos, numa fase se aprendizagem, para perceber a contaminação, o que possa estar a causar confusão aos participantes e onde é possível melhorar. “Acusam-nos de experimentalismo, mas temos fundamento. É uma opção que deve ser reconhecida pelos gestores públicos em Portugal. Temos o porta-a-porta, a recolha tradicional com os contentores e a opção dos sacos ópticos”.

SENSIBILIZAÇÃO
Esclarecer as dúvidas da população é fundamental, mas importa também que as pessoas interiorizem que os biorresíduos são um recurso efectivo e que devem ser tratados como tal.

Levar a recolha selectiva a 400 mil pessoas

Dada a sua dimensão e elevada população, Sintra decidiu avançar com o processo da recolha selectiva de biorresíduos “mais cedo”. Para isso, os SMAS de Sintra lançaram, em Outubro, um projecto piloto para cinco mil fogos (15 mil pessoas), que está, neste momento, a ser alargado a 25 mil (75 mil pessoas).

Tal como Cascais, Sintra optou por pedir aos seus munícipes que fizessem a separação dos biorresíduos em sacos coloridos, que são, depois, separados do indiferenciado no sistema em alta. “Factores ambientais e financeiros” pesaram na decisão, explica Carlos Vieira, director delegado dos SMAS de Sintra, mas, acima de tudo, estiveram a dificuldade de “encontrar espaço para mais um contentor ou para abrir mais um buraco” e a “pouca flexibilidade” de outros sistemas. “Uma das grandes mais-valias deste projecto é o facto de ser muito pouco intrusivo relativamente à forma como as pessoas recolhem os resíduos – recebem o balde de 7l e um conjunto de sacos de determinada cor, fazem a separação dos resíduos alimentares e, depois, colocam no indiferenciado. É muito flexível, já que as pessoas não têm dias específicos para colocar os resíduos, e não implica, para as entidades gestoras, qualquer tipo de maior encargo relativamente às questões das viaturas ou número de circuitos, mantivemos o mesmo serviço que já tínhamos”.

Apesar de, inicialmente, a experiência ter exigido “alguma reorganização, uma nova forma de contacto com os munícipes”, tem também sido “extremamente agradável” no que se refere à aceitação dos munícipes, superando até expectativas iniciais”. Houve acréscimos em apenas duas coisas: muita sensibilização e, do ponto de vista financeiro, a distribuição dos baldes e sacos. “São custos facilmente reembolsáveis tendo em conta a mais-valia que temos”, aponta Carlos Vieira, garantindo que não vai haver qualquer tipo de repercussão para o munícipe em termos de facturação. “Hoje, pagamos cerca de 47 EUR/tonelada por tratamento dos indiferenciados e 40% desse indiferenciado tem um possível biorresíduo. Se conseguirmos tirar daí 20-30% de biorresíduos, pagamos o projecto e ainda sobra dinheiro. Em termos financeiros, é interessante”, defende o responsável.

À semelhança do primeiro piloto, para o qual os SMAS de Sintra obtiveram financiamento, a expansão do projecto é também objecto de uma candidatura ao Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos. Todavia, a acção avança com ou sem aprovação. “Pretendemos cobrir toda a zona urbana de Sintra em 2022, o que seria muito importante, e terminar o processo em 2023. Se essas fontes de financiamento chegarem, teremos a capacidade de acelerar este processo e de ter, ainda antes do final de 2023, todo o concelho coberto”, avança o gestor. Para além disto, o município de Sintra faz a recolha selectiva de resíduos alimentares em cerca de 300 estabelecimentos e tem em marcha um projecto de compostagem doméstica, no qual entregou 300 compostores. Para breve, está prevista a compostagem comunitária e a construção de quatro ecocentros.

Vamos conseguir até 2023?

Para Luís Capão, alcançar os objectivos propostos significa que algo tem de mudar. “Estamos há 20 anos para atingir as metas de papel, plástico e vidro e só chegámos a metade; agora, juntamos um fluxo mais difícil, menos higiénico, e achamos que vamos conseguir cumprir, seguindo exactamente o mesmo modelo?”, questiona. Enquanto se buscam soluções para este novo fluxo, o tema levanta a curiosidade de todos os envolvidos, incluindo o cidadão, mas tal não chega. “Se não conseguirmos cumprir o prazo, não será por falta de interesse, mas por falta de apoios financeiros, para a aquisição dos baldes, dos contentores, até para as campanhas de sensibilização. Tudo isso envolve questões financeiras e é preciso quadros de apoio para que os municípios possam fazê-lo”, avalia Carmen Lima.

A obrigatoriedade desta recolha inclui derrogações que podem justificar-se por razões ambientais, técnicas e económicas, o que significa que a recolha não tenha de acontecer com a mesma intensidade em todos os municípios do país. Não está também definido uma quota de população ou território que deve ser coberto por este sistema, porém, os responsáveis da LIPOR não têm dúvidas de que os próximos dois anos serão “muito fortes” no desenvolvimento destes projectos e no alargamento de recolha de resíduos alimentares e de verdes, “que são uma fracção muito importante e significativa nalguns municípios”. Os técnicos lembram ainda que o aumento da quantidade de resíduos recolhidos levará à necessidade de construir novas unidades de tratamento, não só na LIPOR, mas em todo o país, pelo que é “fundamental” que continue a haver apoios para este efeito.

Carlos Vieira não tem dúvidas: “temos de aumentar substancialmente a nossa recolha selectiva”. É apenas o cumprimento das metas que está em causa? Evidentemente que não e o gestor responde com uma pergunta: “o que vamos fazer com a fracção que não é possível reciclar? As incineradoras que temos no país estão sem capacidade para receber mais resíduos. Das duas, uma: ou investimos em mais capacidade em termos de incineração – e de que forma isso se financia – ou encontramos outros mecanismos de tratamento destes resíduos”.

Sensibilizar e informar todos os envolvidos

Em qualquer modelo, a sensibilização da população é determinante para o sucesso e deve começar pela prevenção da geração de resíduos. Carmen Lima sugere a introdução de campanhas de recolha de desperdício alimentar que possam ser feitas em cafés, restaurantes ou cantinas, o que “permite que alimentos em bom estado possam ser consumidos noutros destinos, evitando a produção de uma maior quantidade de resíduos”. No residencial, depois de apelar à redução do desperdício, há que acompanhar as pessoas no processo. “Não se pode arrancar com um projecto de recolha de biorresíduos, fazer uma formação inicial e, depois, abandonar a população”, alerta. O assunto levanta ainda muitas dúvidas e, por isso, a ambientalista considera importante que as autarquias, pela proximidade que têm às comunidades, encontrem mecanismos através dos quais as pessoas possam tirar dúvidas, seja com linhas de atendimento, seja com a utilização de novas tecnologias, tal como fez a Quercus com a WasteApp.

Para os SMAS de Sintra, apresentar uma solução simples e flexível é crucial para levar as pessoas a aderir e, assim, tentar contrariar alguma “estagnação em que a recolha selectiva tem estado nos últimos anos”. No entanto, tal não significa que se possa descurar a sensibilização, que exige “sempre um período longo”. Os técnicos da LIPOR deixam clara a importância da sensibilização, o que resulta, mesmo após “relutância inicial natural”, em taxas de aceitação no residencial que “superam as expectativas”. “É também uma curva de aprendizagem, vamos ter de ir trabalhando a adesão das pessoas”, refere Filipe Carneiro, lembrando a importância do exemplo: “se o contentor estiver limpo, as pessoas participarem e o serviço correr bem, ganha-se a confiança dos mais cépticos”.

No final do dia, importa que as pessoas interiorizem que os biorresíduos são um recurso efectivo, que deve ser tratado com o cuidado que merece. “Tem de começar na casa de cada um. Para ter a qualidade necessária, é impossível colocar a responsabilidade toda no município ou no tratamento em alta, até porque, se [o resíduo] vier muito contaminado, é muitas vezes tecnicamente impossível separá-lo”, apela o gestor de divisão. Não obstante, para qualquer modelo, prevenir e reduzir a produção de qualquer tipo de resíduos é imprescindível. Precisaremos novamente de um Gervásio para mostrar como se faz?

NOVAS TECNOLOGIAS: UMA PARTE DA SOLUÇÃO

A introdução da obrigatoriedade da recolha selectiva de biorresíduos vai causar mudanças nos sistemas de recolha e tratamento e as novas tecnologias parecem fazer parte das soluções. Na recolha porta-a-porta residencial dos municípios associados da LIPOR, a lógica do “contentor inteligente”, na qual os contentores têm um identificador electrónico que é lido pela viatura, tem sido “crucial” para que se consiga fazer a monitorização dos projectos de recolha e, a partir daí, a sua gestão e optimização. “Queremos algo parecido nos contentores de proximidade que vão ser instalados, isto é, perceber, através do identificador electrónico quantas vezes a pessoa abriu o contentor e monitorizar e conhecer o padrão de recolha que vai acontecendo”, avança Henrique Silva.

A implementação de um sistema de separação óptica é um exemplo do contributo das novas tecnologias para o aumento da recolha selectiva, mas pode também ajudar na implementação de sistemas PAYT. “Com este sistema, podem implementar-se mecanismos em que é possível, por exemplo, adquirir tipologias de sacos em vending machines ou através de um cartão pessoal e, sempre que se comprar a mais, paga-se mais, sendo que os sacos para separação são sempre mais baratos do que os indiferenciados”, exemplifica Luís Capão. Para além disso, a solução pode ser relevante muito em breve, quando a factura dos resíduos deixar de estar indexada à factura da água. “É algo que teremos de fazer nos próximos anos”, diz Carlos Vieira, “as novas tecnologias vão ser muito importantes para encontrar soluções que permitam, por um lado, manter os nossos níveis de facturação, para que as nossas entidades sejam sustentáveis, e, por outro, dissociar do consumo da água a facturação dos resíduos”.

A experiência da Quercus com a WasteApp mostra também como as ferramentas tecnológicas podem ajudar a esclarecer as pessoas. “A nossa aplicação ajuda a fazer essa separação e georreferencia onde se podem colocar os vários tipos de resíduos. Temos recebido algumas dúvidas sobre os biorresíduos”, conta Carmen Lima. Já no projecto piloto de Cascais, os participantes “pediram” para ser compensados pelas boas práticas, o que, através de gamificação, abre portas a possíveis modelos de reinvestimento em equipamentos para a comunidade.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 30 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2021, aqui com as devidas adaptações.