Qualquer percurso pela Bienal de Veneza – seja de pavilhão em pavilhão, seja ao atravessar a exposição principal nos Giardini e no Arsenale – faz tanto mais sentido quanto mais soubermos relacionar pequenas e grandes narrativas, tendências culturais e acontecimentos praticamente invisíveis. Sendo este equilíbrio o objectivo desta breve ‘visita guiada’, convido os leitores a estabelecer relações produtivas entre coisas que, à partida, poderiam parecer distantes; seja a Bienal essa montra de ideias e prácticas projectuais que, pelo mediatismo e investimento, vale sempre a pena conferir. Até 24 de Novembro.
PARTE VI
A Dinamarca explora, por via do cinema a preto e branco de Larissa Sansour, um entrelaçado de questões: memória, trauma, identidade e pertença. De origem palestiniana, a artista tem abordado a questão da geografia como palco de constestação a partir da sua própria biografia, sendo que a Ficção Científica é o veículo que escolheu para transpor para um atraente universo visual aquilo que de outra forma seria da ordem dos media correntes. É mais um pavilhão sobre os últimos (de certa forma também os primeiros) dias da Humanidade e a verdade é que o guião nos leva para um mundo subterrâneo que sobrevive a um desastre ecológico. Num limbo entre passado e (muito incerto) futuro, duas mulheres discutem, num ritmo pausado, os fantasmas – uma argumentando que estes não lhe interessam, pois pertencem ao passado; a outra contra-argumentando que o passado nunca deixa de estar presente. Ou seja, construída sobre fantasmas, aquela frágil realidade é continuamente questionada e reconstruída (nem que seja como nos contos de fadas, como afirma uma das protagonistas).
A Dinamarca é representada pela palestiniana Larissa Sansour. | Fotografias de Mário Caeiro
A fantasmagoria, algures entre Tarkowski e K. Dick no cenário de uma Belém de cimento, tem o peso de um drama grego e o ritmo quase fúnebre de um debate filosófico. Para Dunia (no leito de morte), e para quem a cidade ainda é a sua casa, a memória do mundo desaparecido ‘lá em cima’ é o link existencial para quem ela (ainda) é; para Alia – um clone – qualquer memória herdada constitui uma nostalgia desnecessária, senão alienante. O que está em causa na conversa é o que sempre definiu a vida humana na terra – compromissos. De uma maturidade visceral, a obra demonstra o modo dialógico que sempre constituiu a essência tanto da vida em sociedade como da vida de cada um de nós, que somos sempre (pelo menos) dois.
Uma parceria entre a Escócia e Veneza (evento colateral) apresenta nas Docas do Arsenal um filme de Charlotte Prodger. A artista é conhecida pela sua preocupação com a perspectiva e a fisicalidade da própria câmara enquanto dispositivo escultórico. No seu trabalho, flutuando continuamente entre o macro e o micro, o experienciado e o descrito, é desde logo importante por nos recordar a materialidade dos mecanismos da captação e reconstrução da imagem; por outro lado, integra preocupações da cultura queer de um modo ousado – no caso recorrendo ao mundo animal – a protogonista do filme acaba por ser uma leoa filmada no Delta do Cubango, o maior delta interior do mundo – para abordar questões de género na perspectiva da sua dimensão intima e simultaneamente pública, pessoal e política. Isto é conseguido através da voz-off da artista que reflecte sobre a sua evolução, no tempo, isto é, uma sucessão de afinidades, desejos e perdas.
Os temas da subjectivação, da autodeterminação e da própria queerness estão hoje em dia sobrevalorizados, mas nesta obra a beleza impõe-se, sobretudo pelo pulsar interior da narrativa visual e a escala da projecção, funcionando verdadeiramente como uma paradoxal paisagem de câmara.