Polónia. Roman Stańczak em altos voos. | Fotografia de Agata Wiórko
Qualquer percurso pela Bienal de Veneza – seja de pavilhão em pavilhão, seja ao atravessar a exposição principal nos Giardini e no Arsenale – faz tanto mais sentido quanto mais soubermos relacionar pequenas e grandes narrativas, tendências culturais e acontecimentos praticamente invisíveis. Sendo este equilíbrio o objectivo desta breve ‘visita guiada’, convido os leitores a estabelecer relações produtivas entre coisas que, à partida, poderiam parecer distantes; seja a Bienal essa montra de ideias e prácticas projectuais que, pelo mediatismo e investimento, vale sempre a pena conferir. Até 24 de Novembro.
PARTE IV
Ghana Freedom é uma lufada de ar fresco, mais não seja que pela clareza do projecto expositivo que coloca os espectadores num ambiente cuidado (q. b.) que sugere a solenidade do museu. Nesta primeira participação do país na Bienal, são apresentadas obras de seis artistas – Felicia Abban, John Akomfrah, El Anatsui, Lynette Yiadom-Boakye, Ibrahim Mahama e Selasi Awusi Sosu, entre as quais é obrigatório destacar as inusitadas pinturas-tapeçarias de El Anatsui ou, logo à entrada, a parede de Ibrahim Mahama. Ao perto, percebe-se que, no primeiro caso, estas belas ‘telas organicamente dispostas são feitas de materiais diversos (alumínio reciclado, inclusive de latas e caricas) agarrados a redes que ao longe sugerem a ideia de mapas, de territórios, onde divisamos, por um momento, fronteiras, rios, elevações. Eis uma forma subtil de referir-se com elegância e dignidade o tema das migrações. Isto é, a existir uma arte pós-colonial, ela parece passar por aqui, por esta dignificação radical de um modus operandi que assume querer ser ‘traduzido’ para a linguagem global do mundo da arte.
A linha de trabalho no Pavilhão do Gana ressoa a abordagem do artista Roman Stańczak no Pavilhão da Polónia. Mas onde os africanos se ficam por ‘mobilar’ a casa do mundo, Stańczak cria nada menos que o avesso de um avião. Flight é uma ‘inversão do mundo’ e sem dúvida que é das 4-5 imagens que ficará desta Bienal e, se calhar dos ‘tempos interessantes’ que vivemos.
Pela síntese atingida, é aliás difícil falar sobre a peça, que mais parece um gesto puramente intuitivo que propriamente um statement filosófico ou outro. Tem essa frescura. A situação criada evoca aliás o acto surrealista; mas, ao mesmo tempo, pela sua imediatez fenomenológica, há quem nele veja um poema em lixo sobre o estertor do sistema de valores do capitalismo (mesmo que incapaz de captar o modo oblíquo e profundamente irónico como comenta o actual regime político na Polónia). Quando a arte tem assim vários layers subtilmente entrelaçados, como que para camuflar a sua jovial radicalidade, ela presta um sério serviço à esfera pública do gosto. Memorável.