Qualquer percurso pela Bienal de Veneza – seja de pavilhão em pavilhão, seja ao atravessar a exposição principal nos Giardini e no Arsenale – faz tanto mais sentido quanto mais soubermos relacionar pequenas e grandes narrativas, tendências culturais e acontecimentos praticamente invisíveis. Sendo este equilíbrio o objectivo desta breve ‘visita guiada’, convido os leitores a estabelecer relações produtivas entre coisas que, à partida, poderiam parecer distantes; seja a Bienal essa montra de ideias e prácticas projectuais que, pelo mediatismo e investimento, vale sempre a pena conferir. Até 24 de Novembro.
PARTE I
Ponto prévio. Arte como deve ser
“Não queremos ser apocalípticos, mas sentimos que é necessária uma mudança. O que importa acaba na obscuridade, pois queimamos tempo e pensamentos indo atrás de breaking news e conversetas sociais. Enquanto bailamos à beira do abismo, a arte tornou-se um ponto cego como tudo o resto.”
Editorial do jornal Arts of the Working Class, n. 6, Maio de 2019.
Num anónimo quiosque à entrada dos Giardini, é possível comprar o Arts of the Working Class e deleitarmo-nos num manancial de crítica e estética alternativas a que dificilmente teríamos acesso se não estivéssemos no perímetro de cativação de um evento à escala global, um verdadeiro palco não apenas de vaidades e poderes, mas da intelligentsia e de criatividade. Ou seja, Veneza é o que é porque há o circuito oficial, e dentro deste sucessivas gradações do conceito de VIP; mas também uma miríade de acções abaixo do radar que fazem, também elas, o seu caminho até aos seus públicos. Públicos por cuja atenção competem nações e privados, galerias e instituições públicas.
A verdade é que neste não-território é possível um pavilhão – o da Venezuela – ser tomado de assalto por activistas que transformam uma canoa abandonada numa espécie de ready-made para a acção política; ou, no extremo oposto, uma participação oficial – a do Brasil – conseguir comunicar os seus valores ostensivamente de oposição aos poderes políticos vigentes no país. Neste plano, o pavilhão de um Portugal pós-Troika é uma serena afirmação de um estatuto cada vez mais sólido, surpreendendo, ao final, não tanto pelo rigor e consistência da proposta estética da artista– Leonor Antunes, merecidamente reconhecida internacionalmente– mas pelo… conservadorismo.