Todos partimos do mesmo desafio: a crise climática tem trazido períodos de seca mais extremos intercalados com fenómenos de precipitação intensa, mas curta, ameaçando a disponibilidade de um recurso essencial, a água. Como pode a ciência orientar as cidades para soluções eficazes? Poderão os decisores políticos, com os cidadãos, liderar o caminho da resiliência?

Em 1992, a Organização das Nações Unidas escrevia que “a água não é uma doação gratuita da natureza”, sendo, “algumas vezes, rara e dispendiosa” e podendo “muito bem escassear em qualquer região do mundo”. Passadas três décadas, o postulado da Declaração Universal dos Direitos da Água começa a tornar-se evidente. Com o agravamento dos efeitos das alterações climáticas e com a população mundial a crescer, a pressão hídrica acentua-se e ameaça acompanhar-se de um presságio de escassez. Portugal, à semelhança de outros países, enfrenta um desafio assustador. Depois de um ano em que 97% do território atingiu um nível de seca severa, o risco está próximo de casa e sente-se cada vez mais no dia-a-dia das pessoas e das cidades, que dependem deste recurso. Ao mesmo tempo, as alterações climáticas têm também como consequência períodos curtos de precipitação mais intensa, que aumentam a probabilidade de inundações e cheias rápidas. “As duas situações são dramáticas”, afectando vários sectores da sociedade, sublinha José Ferreira, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologias da U. Nova de Lisboa (FCT Nova) e investigador do MARE–Nova.

Perante estas oscilações, surge uma questão: será possível aproveitar a abundância de água num dado momento para mitigar a escassez nos períodos de seca? Segundo os especialistas, sim e não. Sim, porque é possível e desejável preparar as cidades para aproveitarem este recurso para usos não potáveis, tendo, em paralelo, um impacto positivo na estabilização do ambiente. E não, porque não é “solução única” e, em Portugal, não chove o “suficiente”.

Ainda assim, no actual cenário climático, preparar as cidades para reterem e armazenarem água da chuva para posteriores usos não potáveis é “cada vez mais relevante”, destaca Manuela Moreira da Silva, bióloga e professora no Instituto Superior de Engenharia da U. Algarve, onde é directora do mestrado em Ciclo Urbano da Água. E, como explica a também investigadora do CIMA-ARNET e do CEiia, no CoLAB Smart and Sustainable Living, este aproveitamento implica dois tipos de acções: a criação de bacias de retenção (ou similares) em zonas estratégicas em termos de planeamento urbano e a implementação de soluções baseadas na Natureza (NbS), conhecidas como infraestruturas verdes.

“Aproveitar o que cai do céu”

As NbS têm sido alvo de destaque quando se aborda a regeneração urbana, por se associarem a uma série de benefícios ambientais, sociais e económicos, desde a promoção da qualidade de vida e da biodiversidade, até à redução de picos extremos de temperatura e ao sequestro de carbono. Quanto à água directamente, o planeamento urbano biofílico – isto é, que integra a natureza – aumenta a humidade atmosférica e presta um outro serviço ecossistémico essencial: aumenta a permeabilidade das cidades, permitindo-lhes actuar como “esponjas”, o que, por seu turno, aumenta a capacidade de adaptação e mitigação em relação aos efeitos das alterações climáticas. Em termos práticos, José Ferreira, especialista em Geografia e Planeamento Regional, refere que a implementação de NbS – parques, hortas urbanas, jardins, bosques urbanos, canteiros, biovaletas, jardins de chuva, passeios arborizados e coberturas verdes – facilita a retenção de água, atrasando a escorrência e diminuindo o perigo de cheias e inundações, ao mesmo tempo que promove a infiltração hídrica gradual.

Além deste serviço, e fazendo jus ao cariz “multifuncional” das infraestruturas verdes, José Ferreira defende que a “cidade do futuro” passa também por associar a estas NbS a função de armazenamento de águas pluviais. Para ilustrar esta possibilidade, Manuela Moreira da Silva partilha um projecto em que está envolvida e cujo objectivo foi intervencionar o lago de 1200 m² do Jardim das Comunidades de Almancil, em Loulé, preparando-o para reter e armazenar água para posterior rega inteligente do espaço, apenas quando necessário e diminuindo a dependência da água tratada para consumo humano.

Na adaptação dos territórios a estas funções, outra possibilidade é reconverter ou criar espaços para acomodar bacias de retenção que possam, depois, encaminhar a água para rega, limpeza de ruas, entre outros usos. “Estas grandes áreas podem ser perfeitamente alagadas durantes episódios de precipitação extrema, sem implicações ou custos muito grandes e sem porem em risco a vida humana. E, na maior parte do ano, podem ser um jardim, um parque urbano, uma área agrícola, um campo de jogos”, descreve José Ferreira. Rita Maurício, engenheira do ambiente, professora na FCT-Nova e investigadora do CENSE-FCT Nova, acrescenta, contudo, que manter esta origem hídrica disponível por vários meses é improvável pois em Portugal “não chove o suficiente” e construir várias bacias de retenção para compensar é “demasiado caro” e complicado em termos logísticos – era preciso “ter várias” estruturas, num “espaço mais subterrâneo” e espaço é algo que nem sempre é fácil encontrar, principalmente em cidades antigas.

As bacias de retenção, quando devidamente preparadas, podem ainda ter outra função na protecção ambiental, aponta Manuela Moreira da Silva. Quando chove e a superfície urbana é impermeável, a chuva escorre e transporta poluentes acumulados até aos ecossistemas naturais. Havendo zonas de retenção, as águas “podem ser pré-tratadas” através da fitorremediação e, então, introduzidas, gradualmente nos ecossistemas naturais.

Sejam NbS, sejam reservatórios artificiais, as acções podem ter uma aplicação a várias escalas, desde o território ao edifício. Neste último nível, é importante encontrar também medidas de aproveitamento de chuvas. Para José Ferreira, o requisito mínimo de manutenção de espaços verdes permeáveis, essencial em bairros de ocupação extensiva, deve ser alargado pelos regulamentos municipais no sentido de fomentar projectos com paredes e coberturas verdes. Mas o aproveitamento da água da chuva pode reflectir-se nos consumos dos edifícios e, sobre isso, Rita Maurício dá os exemplos do centro comercial do Colombo, onde foi criada uma dupla canalização para aproveitar esta origem pluvial na lavagem de pavimentos e nalguns autoclismos, e de alguns prédios holandeses e alemães que armazenam águas pluviais em reservatórios e as encaminham, após uma simples filtração, para máquinas de lavar roupa comunitárias, normalmente, instaladas nas caves dos edifícios. “São países onde chove mais, o que permite uma certa regularidade”, lembra.

Mestrado em Ciclo Urbano da Água

Veio colmatar a falta de oferta formativa nesta área. Segundo Manuela Moreira da Silva, recebe jovens do mundo inteiro, das engenharias às ciências que trabalham a água nas cidades, e promove tanto a criação de soluções inovadoras como a investigação aplicada com acções locais.

Diversificar as origens

O aproveitamento da água da chuva é uma medida importante para a gestão eficiente da água e para a poupança das fontes de água natural e dos respectivos habitats que sustentam, mas não é medida única. Na perspectiva dos especialistas, é necessário diversificar as origens, tendo a circularidade como a palavra de ordem. “O objectivo é que a água natural que se vai captar e depois utilizar no ciclo urbano da água permaneça nesse ciclo o mais tempo possível, tirando partido da tecnologia para a reutilizar e para a manter a circular por usos que sejam compatíveis com a qualidade da água que se tem”, realça Manuela Moreira da Silva.

Exemplos de como a reutilização dos recursos hídricos pode ser uma mais-valia já se encontram um pouco por todo o país. No Algarve, a entidade gestora (AdA) está a avançar com um estudo que inclui um grupo de dez ETAR, para se produzir água para reutilização em rega de campos de golfe e/ou de algumas culturas agrícolas na proximidade. Suprir parte das necessidades agrícolas – responsáveis por cerca de 60% do consumo de água em Portugal – com água residual tratada tem a vantagem de poupar os sistemas hídricos naturais e os tratados para consumo humano e mais: nutrientes, como o azoto, que estão presentes nas águas residuais tratadas diminuem a necessidade de aplicação de fertilizantes de síntese, explica Manuela Moreira da Silva. No caso da ETAR de Faro Noroeste, a prática de regar um pomar de citrinos com o efluente tratado já demonstrou “reduzir em 50% a energia gasta para transportar a água e, em cerca de 90%, a aplicação de fertilizantes de síntese azotados. Assim, a produção de alimentos será mais sustentável; [sendo que,] neste caso, consegue diminuir-se para cerca de metade as emissões de carbono associadas a cada quilograma de laranja. E isto é o futuro”, exemplifica.

No contexto da diversificação de origens hídricas, é inevitável abordar a dessalinização – uma das tecnologias mais antigas de produção a partir de águas salobras que remonta ao tempo de Aristóteles e cuja eficiência foi impulsionada pela necessidade de acesso a água potável em viagens marítimas. Esta alternativa, que é uma realidade na ilha de Porto Santo há vários anos, está agora a ser implementada também em cidades algarvias. Há 20 anos, esta abordagem no Sul do país seria menos viável (a nível económico e ambiental) do que ir buscar água ao Alentejo, mas a insuficiência de reservas (capacidade e origens limitadas) e a pressão do turismo em períodos de maior consumo de água estão a inverter o paradigma.

Igualmente, o aumento exponencial de instalação de dessalinizadoras nos últimos anos, sobretudo no Médio Oriente, nos Estados Unidos da América e em países como Cabo Verde, com grande escassez do recurso, tem tornado a solução mais competitiva, refere Rita Maurício. Contudo, a sua adopção continua muito associada ao preço do combustível fóssil, que é a fonte de alimentação energética mais comum destes sistemas, já que os térmicos renováveis são menos eficientes. Hoje, ainda é “uma tecnologia muito cara, tanto em termos de custos operacionais, porque consome muito mais energia do que o tratamento de água de origem doce”, como em termos ambientais, por carecer também de pré-tratamentos químicos que impactam os ecossistemas. Com a escassez de água em várias localizações do país, se a deslocalização populacional não for uma opção, a dessalinização tornar-se-á uma alternativa, que será mais competitiva “quando houver uma mudança na forma como produzimos energia”.

Trabalhar a montante

Cada molécula de água permanece no planeta durante biliões de anos. A água é a mesma. (…) As nossas águas residuais levam a nossa impressão digital e o retrato da nossa economia, dos usos que lhes damos”, sublinha Manuela Moreira da Silva. Com os padrões actuais de consumo de água “assustadoramente insustentáveis”, urge olhar para este reflexo e trabalhar também a montante do problema. Além da diversificação de origens e da ajuda da tecnologia para maximizar a circularidade da água, é preciso melhorar tudo aquilo que tem que ver com consumos, perdas e desperdícios.

Consumos e desperdícios são duas faces da mesma moeda. Abordar estes dois conceitos implica repensar a forma como estamos habituados a utilizar a água, desde o nível do cidadão à do território. Será legítimo consumir água desnecessariamente, isto é, quando não acrescenta qualidade de vida, ou ter caudais de água em torneiras e descargas de autoclismos demasiado elevados, como denuncia Manuela Moreira da Silva? Será necessário que a qualidade da água seja exactamente igual à da água que se bebe, sendo apenas utilizada como modo de transporte de resíduos, como refere Rita Maurício? Há muitas coisas que se podem fazer a este nível, sobretudo do edificado, e alguns estudos mostram que é possível reduzir 30% do consumo de água numa habitação doméstica “de forma muito expedita e sem perder qualquer tipo de conforto”, sublinha a bióloga, e que têm de ser pensadas a nível do território. Se se utilizar água própria para consumo humano numa torneira da cozinha e água reciclada para fins menos nobres, então é preciso ter dois sistemas de distribuição diferentes. A dupla canalização, defende Rita Maurício, é uma aposta que deve ser agarrada pelos municípios em duas frentes: legislar nesse sentido para novas construções – como já se faz, por exemplo, em Barcelona –, bem como planear e infraestruturar a cidade “pouco a pouco” para ter condutas nas ruas para a lavagem e a rega urbanas.

Adaptar as cidades ao consumo de água residual tratada para usos não potáveis deve passar, numa segunda fase, por repensar a gestão das ETAR. As grandes ETAR estão localizadas nas zonas mais baixas da cidade, já que o escoamento funciona graviticamente, pelo que, para se utilizar água residual tratada em pontos mais elevados da cidade, é preciso “gastar muita energia na elevação”. Porém, a engenheira ambiental aponta para duas formas de minorar este desafio: por um lado, difundir energias renováveis e, por outro, criar ETAR mais compactas em bairros elevados e com grande densidade populacional para evitar a elevação da água. Além disso, Rita Maurício ressalva a importância de se melhorar os sistemas de tratamento de água residual para permitir uma reutilização mais segura. “As nossas estações de tratamento, e as do mundo inteiro, não foram concebidas nem pensadas para remover compostos de preocupação emergente [medicamentos não assimilados, por exemplo]. Foram concebidas para remover matéria orgânica essencialmente; algumas têm a capacidade de remover nutrientes também e algumas desinfectam, mas também não ao ponto de a água ficar isenta de microrganismos.” Neste âmbito, é necessário avaliar sempre o risco, monitorizá-lo e apostar em boas práticas que o minimize, como a rega nocturna.

Já as perdas são um problema que exige uma atenção primordial, dado que ascendem aos 30% em Portugal. Dentro do próprio país, há exemplos quase ao nível de Singapura, uma referência mundial nesta matéria. É o caso do território servido pela EPAL, que, através de sistemas de detecção, consegue ter perdas inferiores a 15%. Mas há outros locais com “quase 60% de perdas. Estamos a perder água e, na mesma proporção, energia e reagentes porque vamos ter de produzir mais para compensar o que se perde”, alerta Rita Maurício. Apesar de a redução de perdas até zero ser improvável na visão dos especialistas, Manuela Moreira da Silva diz que é preciso atingir um valor “tecnologicamente aceitável” que não exceda os 10%.

Água-Energia-Carbono-Co-criação

Aproveitar a água das chuvas e outras origens de água – checked. Adequar essas origens aos fins e maximizar a circularidade – checked. Ter maior consciência dos consumos e minimizar desperdícios e perdas – checked. Todos estes itens contribuem para uma gestão eficiente do ciclo urbano da água, apoiada num melhor planeamento, e são medidas importantes para uma cidade que se quer inteligente e resiliente. Todavia, para se conseguir isso, não basta olhar para a água. “Temos de deixar de olhar sectorialmente para a água, para a energia e para o carbono”, diz Manuela Moreira da Silva, defendendo uma visão integrada do ecossistema, incluindo consumos directos e indirectos de água, para se encontrarem respostas sustentáveis. “É muito importante que as cidades trabalhem bem a sua biocapacidade, percebendo a quantidade de recursos que podem explorar, a quantidade de resíduos que podem emitir para que não destruam a base ecossistémica que as suporta e não inviabilizem o funcionamento das gerações seguintes.” Aqui, entram também em cena os sistemas inteligentes preditivos, que podem ser poderosos aliados na hora de expandir e gerir essa biocapacidade de um território em cada momento, incluindo uma análise de risco de cada curso de acção. A partir da recolha, análise e modelação de dados, as cidades podem saber mais do que a capacidade de produção de água a partir da captação natural. Podem, e devem, integrar diferentes variáveis numa visão sistémica para decidir melhor, sabendo que “os usos que [a humanidade] der à água têm que ser compatíveis com as necessidades da natureza”, reforça a investigadora.

Para Manuela Moreira da Silva, uma cidade inteligente é aquela que, tirando partido da ciência e da tecnologia, utiliza os seus recursos de forma eficiente e assegura condições dignas aos cidadãos presentes e futuros. Uma smart city fá-lo ainda de uma forma sustentável e inclusiva, alinhando-se com os valores do Novo Bauhaus Europeu, acrescenta. A inclusão é, aliás, outro dos desafios com que as cidades se deparam, mas cujo potencial para despertar soluções verdadeiramente sustentáveis e resilientes importa concretizar. Neste processo, a bióloga salienta a importância de envolver as gerações mais jovens no desenho e no planeamento de soluções e de cidades que estejam também em harmonia com aquilo que querem para o futuro.

As cidades vão precisar de um plano, que, para José Ferreira, deverá assentar num modelo de base ecológica e numa abordagem preventiva. No entanto, passar do plano para o terreno exige a contribuição dos cidadãos. Como tal, será necessário criar incentivos e trabalhar a literacia das pessoas. “Uma coisa é a percepção, outra é o entender, e outra é o praticar. O principal desafio neste momento não é convencer os municípios da necessidade de soluções com base na natureza. É trabalhar com a comunidade, co-construir as soluções.”

Envolvido no desenvolvimento do mais recente Plano Director Municipal (PDM) de Setúbal, o geógrafo partilha que todos estes aspectos estão a ser contemplados no documento. “Com uma filosofia dos serviços que a infraestrutura irá prestar e da potenciação destes serviços para o território”, o PDM de Setúbal, à espera de aprovação, vai incluir um incentivo de majoração no IRS para quem cumprir a quota de espaços permeáveis na sua propriedade. A par disso, o investigador conta que estão a considerar avançar com laboratórios verdes com algumas comunidades locais com o objectivo de fomentar a literacia, comunicar os benefícios das infraestruturas verdes para o indivíduo e para o colectivo, e co-responsabilizar a população. “Não é só definir um plano do ponto de vista técnico, considerando o ordenamento do território e o urbanismo, para construir bons planos urbanos. É também o processo de construir um bom regulamento e, depois, o processo de trabalhar com as pessoas, chamá-las, co-construir soluções e intervir no território. É nesta escala do município, até à rua, até à casa, que se implementa esta infraestrutura verde. (…) Não é fácil. É um processo, mas é um processo que tem de se iniciar.”  

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 37 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2022, aqui com as devidas adaptações.