O futuro das políticas de mobilidade está aí e o carro particular está a perder o seu lugar na cidade. Madrid Central foi o nome dado pela capital espanhola à gigante zona de exclusão de tráfego automóvel do centro da cidade que entrou em vigor no final de Novembro de 2018. Às medidas de condicionamento implementadas, junta-se a promoção dos modos suaves não poluentes – andar a pé e de bicicleta.

São 472 hectares. O mesmo que dizer 661 campos de futebol em que o carro não entra e a prioridade vai para o transporte público, os peões e a bicicleta. A zona de baixas emissões agora adoptada – e designada por Madrid Central – é uma evolução considerável relativamente às quatro Áreas de Prioridade Residencial (APR), até agora existentes. As excepções vão para veículos de residentes e de entregas, pessoas com mobilidade reduzida, veículos certificados ambientalmente e serviços de emergência.

Madrid Central é a mais ostensiva medida de redução de tráfego automóvel urbano realizada na Península Ibérica e envolve uma mudança de paradigma. Na capital de um país em que o regime monárquico perdura, o carro está a deixar de ser rei e a prioridade começa a ser dada ao transporte colectivo e aos meios sustentáveis de mobilidade. “Favorecer a mobilidade pedonal, de bicicleta e o transporte público e cumprir a normativa europeia em matéria de qualidade do ar” – é assim que o município espanhol justifica a adopção das restrições colocadas em prática. Sem os carros, a cidade convida à utilização da extensa rede de transporte público – ferroviário e rodoviário – e às deslocações a pé e de bicicleta. E o favorecimento dos modos activos não começou agora. O sistema de bicicletas partilhadas da cidade – BiciMAD, que conta com mais de 2 mil bicicletas eléctricas, está em funcionamento desde 2014 e atingiu, o ano passado, o seu recorde de utilização diário– mais de 16 mil viagens.

A ambição da cidade passa por reduzir o nível de tráfego rodoviário em 37%, eliminando 40% das emissões de gases com efeito de estufa. Desde 2010 que Madrid viola as regras europeias, no que respeita à qualidade do ar e esta é uma realidade que a cidade quer mudar. Para isso, tomou medidas sérias. Em alguns arruamentos, o atravessamento pedonal passa a poder realizar-se em qualquer local e as velocidades praticadas pelos veículos motorizados descem. Deixa de ser possível exceder os 30 quilómetros por hora em 80% das ruas da cidade, numa medida que transpõe para o terreno as melhores recomendações de vários organismos europeus para a prevenção da sinistralidade rodoviária e para o generalizado aumento da segurança pública.

A medida de larga escala foi aprovada em reunião extraordinária da câmara municipal de Madrid, realizada no dia 29 de Outubro, e foi colocada em prática um mês depois, a 30 de Novembro. As medidas que compõem o Madrid Central juntam-se, assim, às dezenas de medidas previstas no âmbito do Plan A, o plano municipal de qualidade do ar e de alterações climáticas, aprovado em Setembro de 2017, que tem como objectivo reduzir em 23% os níveis de contaminação do ar da cidade.

Os 30 são os novos 50

As ruas tomadas pelas pessoas e as estradas pelas bicicletas. Os carros são enviados para segundo plano e aparecem agora, nas artérias da cidade, como convidados. O espaço finito da cidade não se coaduna com a sua permanência, e, em Madrid, como acontece em cada vez mais cidades pelo mundo inteiro, estão a perder o estatuto de que, outrora, dispuseram. A prioridade é, agora, de outros. Daqueles que foram ficando para trás, para deixar entrar os carros. E mesmo as velocidades praticadas mudam, com o objectivo de reduzir a sinistralidade rodoviária, promover a coexistência dos modos e garantir ambientes mais humanos e seguros, menos agressivos e mais convidativos para quem se desloca a pé e de bicicleta pela cidade.

Se antes a norma era 50 quilómetros por hora dentro das localidades, a realidade agora é outra. Nos arruamentos madrilenos de sentido único e com uma única via em cada sentido – características viárias que perfazem 80% das ruas da cidade de Madrid –, a velocidade máxima permitida passa a ser de 30 quilómetros por hora. Será ainda menor a velocidade máxima (20 quilómetros por hora) em ruas cujos passeios se encontrem ao mesmo nível da via de circulação automóvel – o que acontece predominantemente nos bairros de Lavapiés e Chueca.

Mas as mudanças não acontecem só na restrição do tráfego e na redução das velocidades praticadas. O tom da nova política é de promoção dos modos suaves. Nas Zonas 30 – os arruamentos em que a velocidade máxima praticada é de 30 quilómetros por hora –, os peões passam a poder atravessar a estrada em qualquer lugar, embora o façam sem prioridade sobre quem transita na via. Já nas Zonas 20, é mesmo o peão quem passa a ter prioridade sobre todos os veículos que circulam. Também as bicicletas, sempre que indicado através de sinalização vertical, passam a poder virar à direita em cruzamentos semaforizados, à semelhança do que já acontece em cidades como Paris ou Bruxelas.

Plano A

O Plan A é uma peça fundamental no puzzle complexo da sustentabilidade urbana. Neste “jogo”, o foco é claramente apontado para as questões da mobilidade, um dos sistemas urbanos com maior responsabilidade no desempenho ambiental das cidades modernas. Entre as 30 medidas propostas pelo plano municipal, constam a construção de 30 novos quilómetros de ciclovias em 2019, obras em vias estruturantes da cidade – como é o caso da Grã Via, que será redesenhada para colocar em prática a priorização do peão, através do aumento dos passeios, e criando condições favoráveis à circulação do transporte público, como a instalação de semáforos que dêem prioridade à circulação dos autocarros. No campo da logística urbana, os veículos de distribuição de mercadorias de baixas emissões terão direito a um horário alargado de actuação na zona do Madrid Central.

Apesar do papel absolutamente central da mobilidade na implementação do plano municipal de qualidade do ar e alterações climáticas, são também várias as medidas orientadas para a sensibilização ambiental e para a gestão dos consumos energéticos. A promoção da geração de energia eléctrica com recurso a fontes renováveis, nomeadamente através de instalações de painéis solares, é uma das três dezenas de medidas previstas no plano de acção, tal como a monitorização energética dos consumos em instalações municipais.

A tendência é tirar os automóveis da cidade

Para onde quer que se olhe, as medidas tomadas pela Europa fora convergem, maioritariamente, para a diminuição da presença do automóvel no coração das cidades. A aposta no transporte público e na promoção dos modos activos de deslocação não se ancora, apenas, no imperativo da acção climática. Serve, também – e com resultados comprovados -, para criar cidades mais vivas, libertando espaço e devolvendo-o a quem há muito havia sido retirado: às pessoas.

Na capital norueguesa, Oslo, o compromisso de alcançar emissões próximas das registadas em 1990, numa cidade em que o sector dos transportes é responsável por 61% do total de emissões de gases com efeito de estufa, levou o poder local a adoptar uma estratégia inovadora de forma faseada. Depois de desistir da ideia de banir, simplesmente, os automóveis de uma determinada área central da cidade, o município decidiu optar por um modelo gradual, marcado pela diminuição progressiva da oferta de estacionamento automóvel e pelo aumento, em simultâneo, das áreas pedonais e da infra-estrutura ciclável da cidade.

Muito mais perto de Madrid, a capital catalã também está a dificultar a vida aos carros. Em Barcelona, os chamados Superblocks (ou, em português, Super-bairros) estão a condicionar o movimento dos automóveis e a permitir pedonalizar estradas que anteriormente registavam volumes elevados de tráfego motorizado, devolvendo a calma da vida de bairro e aumentando o espaço de usufruto público. Dentro destes super-bairros, em que o tráfego deixa de poder circular livremente, nascem parques infantis, crescem árvores e surgem estacionamentos para bicicletas. A redução do número de vias e a colocação de obstáculos que obrigam os veículos motorizados a autênticas gincanas tem como resultado a acalmia e a redução do tráfego. O conceito é simples e replicável: como o caminho deixa de ser a direito, só lá entra quem lá precisa de entrar.

Restrições nas cidades portuguesas. Quando?

Em 2016, entravam diariamente 370 mil automóveis em Lisboa. Juntavam-se, depois, aos 160 mil dos residentes da cidade, perfazendo mais de meio milhão de veículos dentro do perímetro urbano. João Pedro Matos Fernandes, actual ministro do Ambiente e da Transição Energética português, alertava, em 2017, para o problema da ocupação do espaço por parte dos automóveis, ao fazer notar que “os carros de cada um de nós estão parados 92% do tempo” e que seria altura de parar de “pensar no automóvel como rei”.

Em Portugal, a restrição ao trânsito automóvel não foi ainda razão para a adopção de políticas tão restritivas e abrangentes quanto as propostas pelo Madrid Central. Em 2011, era implementada a Zona de Emissões Reduzidas (ZER) em Lisboa, numa tentativa de impedir a entrada, na cidade, dos veículos mais poluentes. Contudo segundo artigo publicado em 2017 no jornal O Corvo, “ninguém terá sido multado”.

Por Lisboa, a construção de parques de estacionamento dissuasores nas principais entradas da cidade, em articulação com o reforço dos transportes públicos e a implementação do sistema de bicicletas partilhadas Gira, têm sido anunciadas como algumas das principais medidas para levar à diminuição do uso do automóvel. Contudo, continuam a ser inaugurados parques de estacionamento no interior da cidade por parte da EMEL – a empresa municipal de mobilidade da cidade de Lisboa -, em zonas como a Graça ou Alcântara. Em Madrid, a título de exemplo, são disponibilizados gratuitamente – bastando para isso apresentar título de transporte colectivo – 4 mil lugares de estacionamento em parques dissuasores.

Questionado pela Smart Cities sobre a possibilidade de serem implementadas em Lisboa políticas de restrição de acesso automóvel, semelhantes às colocadas em prática por Madrid, Miguel Gaspar, vereador na autarquia lisboeta com o pelouro da Mobilidade, em entrevista realizada em Novembro passado, respondeu que “as cidades devem adoptar as medidas necessárias para garantir a qualidade de vida de moradores e visitantes e é nesse sentido que Lisboa tem vindo a trabalhar”. No imperativo de se alcançar uma cidade mais sustentável, a pergunta, hoje, parece ter deixado de ser ‘se’ para passar a ser ‘quando’.