No início do séc. XX, os automóveis com motor de combustão interna invadiram as ruas e transformaram as cidades. Com a electrificação da mobilidade, assistimos hoje a uma outra revolução no modo como nos deslocamos, mas os efeitos podem não ser os mesmos, antes pelo contrário. Poderá a mobilidade eléctrica ajudar a devolver as cidades às pessoas?
Feios, caros, lentos e pouco fiáveis. Estas são algumas das ideias que costumávamos associar ao carro eléctrico. Se isto era verdade há uns anos, hoje, a realidade é um pouco diferente: temos eléctricos com design tão ou mais atractivo do que os convencionais (basta olhar para os Tesla), a velocidade não é um constrangimento (se cumprir os limites da lei) e as autonomias podem chegar aos 300 km (nos topos de gama, até ultrapassar). O preço, esse, é ainda um ponto a melhorar, mas existem modelos abaixo dos 20 mil euros e, se o ritmo da evolução tecnológica se mantiver, brevemente, os custos cairão ainda mais. Muitos dos que já optam pelo eléctrico dizem “não querer outro carro” e, provavelmente, não terão outra escolha, já que a própria indústria automóvel está a ponderar deixar de fabricar veículos de combustão interna. A sueca Volvo, por exemplo, anunciou que, a partir de 2019, todos os seus novos modelos serão híbridos ou eléctricos.
A electrificação da mobilidade urbana, tendo como expoente máximo o carro eléctrico, traz consigo oportunidades, mas vai implicar mudanças que têm de ser acauteladas. A substituição na totalidade da frota automóvel não vai acontecer amanhã, mas o número de carros eléctricos está a aumentar. Em 2025, a Agência Internacional de Energia (AIE) estima que haja entre 40 milhões e 70 milhões destes veículos no mundo. Hoje, são pouco mais de dois milhões, apenas 0,2% da frota global de automóveis ligeiros de passageiros. O número é ainda insuficiente para fazer a diferença, porém a oportunidade da mobilidade eléctrica não está tanto na quantidade, mas mais na forma como esta se integra numa mudança de paradigma alargada, da qual fazem também parte os modos suaves, os transportes públicos, a partilha e a condução autónoma.

milhões de veículos eléctricos de duas rodas foram vendidos na China em 2016.
Porquê a mobilidade eléctrica?
A tendência para a electrificação não é um exclusivo da mobilidade e é, aliás, visível noutras formas de usar energia, como aquecer a casa, a água ou cozinhar. Nas cidades, a mudança para o veículo eléctrico (VE) vem resolver um problema de saúde pública alarmante: a poluição do ar. E não é para menos: a Organização Mundial de Saúde estima que, todos os anos, esta seja a causa de 4,2 milhões de mortes prematuras. Mas há também a urgência da descarbonização. À excepção dos Estados Unidos e da Síria, o mundo está comprometido, através do Acordo de Paris, em manter os níveis de aquecimento global abaixo dos 2º C, o que só será possível mediante a descarbonização progressiva de tudo o que fazemos, incluindo a forma como nos deslocamos.
Na Europa, o sector dos transportes está 94% dependente do petróleo, o que, para além da questão ambiental, mexe também com a segurança e a independência energéticas. Para 2050, a meta é reduzir em 95% as emissões resultantes do sector dos transportes. Leia-se: todos os veículos terão de ter zero emissões (ou neutros em carbono). Para isso, há várias alternativas, como biocombustíveis ou o hidrogénio, mas a electrificação parece ser a mais apetecível. Porém, esta não será eficiente se a electricidade não tiver a origem certa. “Ao fazermos a transição para a mobilidade eléctrica, queremos fazê-la assegurando que a energia eléctrica que vai carregar estes veículos tem origem renovável”, alerta João Peças Lopes, director do INESC Porto. Se tal não acontecer, não só não se está a cumprir o desígnio da descarbonização, como os níveis de poluição se mantêm, embora não no local onde o veículo circula.
A aposta nas energias renováveis, em particular hídrica e eólica, colocou Portugal num lugar privilegiado. Olhando para os dados da APREN (Associação Portuguesa de Energias Renováveis), verifica-se que as renováveis têm assegurado mais de metade do uso de electricidade nacional e, apesar de 2017 estar a ser um ano seco, até Setembro, representavam 42,3% da produção eléctrica no país. Todavia, o handicap das renováveis sempre foi a intermitência. Os progressos no armazenamento eléctrico mantêm a expectativa, mas a questão não foi ainda ultrapassada. Por isso, para o também docente da Faculdade de Engenharia do Porto, terá sempre de existir um sistema de backup (centrais termoeléctricas, por exemplo), tal como acontece hoje, ou não “haverá capacidade de assegurar o abastecimento”.
Gestão inteligente
À excepção da instalação dos pontos de carregamento, os especialistas garantem que, de forma geral, a infra-estrutura de rede eléctrica actual tem capacidade para aguentar esta transição, podendo haver apenas necessidade de reforço em zonas mais terminais. “Em termos genéricos, não será necessário fazer reforços na rede eléctrica, e isto é muito importante porque, se tivéssemos de o fazer, esses reforços teriam de ser transmitidos para a tarifa, os consumidores teriam de pagar e isso ninguém quer”, avança Peças Lopes. No entanto, a mobilidade eléctrica vai exigir “uma abordagem inteligente” ao carregamento de baterias, isto porque, se todos carregarmos os nossos VE ao mesmo tempo, nas horas de pico, a rede não vai suportar. “No carregamento lento, [isto significa] carregar as baterias preferencialmente nos períodos de vazio, à noite, em que há folga suficiente para acomodar a carga adicional”, explica Peças Lopes. Esta gestão pode ser feita pelo próprio utilizador, mas, idealmente, será um sistema inteligente e que vai introduzir um novo player no mercado. “É um novo modelo de negócio, um agente agregador que conhece as necessidades de consumo e que serve de interface entre o mercado e operador de rede e os donos dos VE nos pontos de carregamento”, acrescenta.
Outra questão a acautelar é a “ansiedade” relativamente à autonomia e, por isso, é expectável que, a par do carregamento lento, em ambiente privado, exista também uma modalidade de carregamento rápido público, que terá obrigatoriamente uma tarifa diferente. “É um serviço de valor acrescentado adicional e esses pontos de carregamento terão uma infra-estrutura específica de ligação à rede”, antevê o especialista, admitindo que nestes casos possa ser necessário o tal “reforço pontual” da rede eléctrica.
Por enquanto, em Portugal, os carregamentos da mobilidade eléctrica ainda não são pagos, mas isso irá mudar muito em breve. Os tipos de carregamento disponíveis – lento, semi-rápido e rápido – vão ter tarifas diferenciadas. A factura, dizem os especialistas, “é uma surpresa agradável, quatro ou cinco vezes menos do que aquilo que se paga por utilizar um veículo de combustão interna, claramente”. Todavia, para Peças Lopes, isto poderá mudar no futuro de modo a compensar as “eventuais” perdas de receita para o Estado com os impostos sobre os combustíveis.

Vehicle-to-Home ou Vehicle-to-Grid
Nas Grandes Opções do Plano (GOP) para 2018, o Governo incluiu a obrigatoriedade de que todas as novas habitações com garagem tenham pontos de carregamento para VE. A decisão causou algum alarido mas não surpreende se se tiver em conta as ambições de Bruxelas para o sistema energético e para os edifícios. Desde 2008, que a descentralização da produção de energia de origem renovável é uma orientação da Comissão e os edifícios têm aqui a sua grande oportunidade, como centro de transformação de energia e pontos de interacção e flexibilidade com a rede. Inclusivamente, a revisão da lei comunitária que regula o desempenho energético dos edifícios prevê a instalação de infra-estruturas de ligação aos VE, assim como de sistemas de gestão inteligente de energia.
José Henriques, da Magnum Cap, empresa fabricante de equipamentos para carregamento, sugere que se olhe para o VE como uma bateria – “Pela primeira vez, conseguimos ter, de forma distribuída, muita energia disponível nas cidades para consumo local”. Como? O VE pode “absorver” os excedentes de produção de energia renovável e usá-los na mobilidade, ou pode funcionar nas lógicas Vehicle-to-Home ou Vehicle-to-Grid: a bateria pode ser carregada em momentos em que a tarifa é mais baixa e injectar a electricidade nas casas, para autoconsumo ou venda à rede, nos momentos de maior uso e défice de produção, ou, quando há um pico de consumo, o VE pode ajudar a estabilizar a rede. No Norte da Europa, existem já projectos neste sentido, mas, por cá, aponta José Henriques, falta ainda um elemento importante: regulação. “Se eu conecto o meu VE e este injecta energia à rede, tenho de receber dinheiro por isso. Essa regulação tem de ser feita, é uma questão legal, mas ainda não existe, embora haja vontade para que aconteça”.
Entusiasta desta solução, Peças Lopes chama, no entanto, à atenção para o facto de os fabricantes ainda não disponibilizarem VE com essa funcionalidade. “Para isso, os inversores que fazem os carregamentos das baterias têm de ser bi-direcionais e, neste momento, ainda não são, mas vai acontecer e isso vai permitir aliviar a rede em situações críticas, mas também permitir que a bateria satisfaça a procura individual, doméstica ou do edifício, ou com várias baterias, satisfazendo as necessidades do edifício em certos períodos. E até conduzindo a uma situação mais ambiciosa de ter uma maior resiliência do sistema eléctrico em situações de catástrofe. Há claramente uma situação de win-win em todos os sentidos”, antecipa o director do INESC Porto.
Bicicletas, monociclos, tuk-tuk, skates, trotinetas…
A ideia de VE remete-nos quase directamente para o carro eléctrico, mas há mais opções. Às bicicletas e scooters eléctricas cada vez mais comuns nas cidades, junta-se outro tipo de modos, como monociclos, tuk-tuk, skates e trotinetas, que primam pela originalidade. O facto de serem de baixo custo, pequenos e de a sua utilização não exigir qualquer licença será uma alavanca ao aparecimento destas soluções. Em países como a China os VE de baixa velocidade têm ganho muita popularidade – no caso das duas rodas eléctricas, as vendas atingiram os 26 milhões em 2016 no país. Mas também aqui há algumas preocupações, aponta a AIE, nomeadamente no que toca ao impacto ambiental destas baterias e à segurança rodoviária destes VE, em particular nas grandes cidades.
Nisto tudo, não nos podemos esquecer dos gigantes das cidades – os autocarros. “Em termos tecnológicos, o carregamento dos transportes públicos está mais atrasado, porque estão em jogo potências muito superiores e poderá ser precisa infra-estrutura específica”, avalia Peças Lopes. “Há várias soluções, como os pantógrafos, que estão a ser testados em países no Norte da Europa, ou o carregamento indutivo”. Ainda assim, as estatísticas europeias mostram que se está finalmente a passar da fase da demonstração para o desenvolvimento comercial. A frota de autocarros eléctricos na Europa mais do que duplicou em 2015 e, no ano que passou, contavam-se 1273 veículos, segundo a AIE. A nível mundial, esse número era de 345 mil, com a China na liderança, mais concretamente a cidade de Shenzhen, cujo objectivo é ter uma frota de autocarros 100% eléctrica até ao final de 2017.
Ganhar espaço e tempo
Mudar a mobilidade nas cidades não pode ser uma tarefa exclusiva do VE. Aliás, se a mudança se resumir à motorização, não resolveremos dois dos maiores problemas que a presença do automóvel causa na cidade: ocupação de espaço público e congestionamento. “A [introdução da] mobilidade eléctrica pode ajudar a repensar o sistema como um todo” e tendo em conta o ordenamento do território, defende a investigadora Helena Amaro, cujo trabalho se debruçou no impacto da mobilidade eléctrica na morfologia urbana.
Para a especialista, instalar pontos de carregamento é fácil, mas a mudança deve estar a montante, no planeamento: os modos eléctricos deveriam ser pensados em associação aos modos suaves e como um “alimentador” dos transportes públicos, que “permitiria ajudar as pessoas a vencer a first mile e a last mile”, e poderiam também ter um papel importante na logística da cidade e nos territórios de baixa densidade, em particular para as populações mais desfavorecidas. “Mas a conclusão é que, neste momento, a mobilidade eléctrica é para os ricos”, lamenta. E será esse o objectivo? “A ideia é que seja muito barata”, responde André Dias, do Ceiia – Centro de Excelência para a Inovação da Indústria Automóvel, que tem implementado projectos em todo o mundo com base no conceito de “mobilidade como um serviço”. “Há inclusivamente o receio de que se a mobilidade eléctrica for tão, tão barata, isso aumente ainda mais o número de carros nas cidades”, mas a ideia não é essa. O importante é “democratizar a mobilidade”, defende.
Nesta mudança de paradigma, André Dias propõe um sistema em que se perceba o impacto ambiental dos modos – “Estamos a implementar um hub piloto nas imediações do Ceiia, na Maia, que pretende criar um ecossistema com valor transaccional associado às decisões de mobilidade”.
Também para Peças Lopes, a mobilidade eléctrica tem de ser encarada como “um dos vectores” da mudança – na qual, a par dos VE, têm também lugar a partilha, a condução autónoma e os transportes públicos. Todavia, também “de haver uma disciplina e um conjunto de políticas que as autarquias e os municípios vão ter de adoptar para disciplinar a mobilidade dentro da malha urbana”.
era o número de autocarros eléctricos existentes na Europa em 2016.
Cidades, chave para a mudança
O caminho para a mobilidade eléctrica e o ritmo com que o percorremos será muito influenciado pelo enquadramento político envolvente. Incentivos e políticas que aumentem a proposta de valor do VE vão ajudar os utilizadores a ultrapassar as barreiras que ainda persistem e pressionar a tecnologia a avançar. As cidades têm um papel determinante, defende a AIE, testando e demonstrando as boas práticas na mobilidade eléctrica e servindo de exemplo para uma aplicação a larga escala.
A aplicação de restrições à entrada de veículos de combustão interna em certas zonas da cidade é uma das medidas que tem ganhado mais adeptos e que pode contribuir para a disseminação do VE. A principal motivação está na qualidade do ar em ambiente urbano, mas também na urgência em reduzir o volume de emissões de gases com efeito de estufa. São já várias a fazê-lo: no final de 2016, Paris, Cidade do México, Madrid e Atenas anunciaram a proibição de carros a diesel a partir de 2025 e foram seguidas por muitas outras. Estas não são medidas fáceis de tomar, como mostra o caso de Oslo. Em finais de 2015, a capital norueguesa foi a primeira grande cidade europeia a afirmar a sua intenção de banir a entrada de carros no centro já em 2019, mas a reacção dos comerciantes foi de tal modo intensa que foi preciso voltar atrás. Assim, em Junho deste ano, chegou-se a outra solução: não se baniam os carros, mas acabava-se com o estacionamento no centro de Oslo. Também Londres terá, a partir de 2019, uma Ultra-Low Emission Zone, cuja entrada a veículos poluentes será cobrada.
Outro tipo de decisões tem a ver com o reforço de transportes públicos menos poluentes ou de emissões zero. Oslo surge, mais uma vez, na linha da frente, assumindo que, em 2020, todos os transportes públicos da cidade serão alimentados com fontes de energia renovável. Amesterdão estabeleceu uma meta semelhante, mas adiou a data limite por cinco anos. No final da década, os populares táxis londrinos (novos) vão passar a ser de emissões zero, acontecendo o mesmo aos autocarros em 2037. Por sua vez, 12 mayors de cidades, como Paris, Copenhaga ou Barcelona, comprometeram-se oficialmente a, a partir de 2025, adquirem apenas autocarros de zero emissões, e a assegurar que, em 2030, uma grande parte das suas cidades seria também zero emissões. O Governo português está também a tomar medidas, ainda que menos radicais, nesse sentido, e prevê a renovação de 516 autocarros, dos quais 78 serão eléctricos.