Democracia, direitos e liberdades são, para Alex Gladstein, elementos fundamentais para a construção das cidades inteligentes. O Chief Strategy Officer da Human Rights Foundation esteve em Portugal para participar na SingularityU Cascais Summit e, em entrevista à Smart Cities, alertou para a necessidade de evitar que as cidades inteligentes se tornem cidades vigiadas. Para Gladstein, tecnologia e Estado devem estar separados e assegurar que isso acontece não pode ser deixado em mãos alheias: os cidadãos têm de ser “cães de guarda” e obrigar os governantes a prestar contas.
Vivemos tempos conturbados. Considera que a democracia e os direitos humanos estão em risco?
A democracia e os direitos humanos estão sempre em risco! O preço que pagamos pela liberdade é a obrigação de estarmos eternamente vigilantes. Os riscos decorrentes dos impulsos autoritários e populistas que ameaçam a democracia, as liberdades e os direitos cívicos são algo que está sempre presente na mente humana e que é hoje facilmente explorado pelas redes sociais.
A tecnologia está a alavancar esses movimentos?
A tecnologia, como um todo, é agnóstica, mas, na minha opinião, há tecnologia autoritária e tecnologia anti-autoritária. Isto é, há a tecnologia que torna mais fácil que os governos ou as grandes corporações controlem as pessoas, e há a outra que facilita que os indivíduos e as pequenas organizações ganhem poder e se protejam. É uma espécie de “tecnologia defensiva”, como a criptografia. São sistemas que são muito dispendiosos para hackear ou manipular, mas muito baratos para defender.
Em qual delas encaixa a tecnologia usada nas smart cities?
Regra geral, diria na tecnologia autoritária. Temos de ser muito cuidadosos na forma como se constrói a tecnologia dentro das cidades. O cenário ideal, em que tudo funciona de forma perfeita numa cidade, pressupõe que haja uma grande confiança entre o indivíduo e o governo ou a cidade. Isso é algo que apenas algumas pessoas se podem dar ao luxo de fazer, dependendo do quão sortudo és, de onde nasceste… Um português pode confiar no seu governo local de uma forma que um venezuelano não pode, por exemplo. Neste momento, há muitas sociedades que têm um Estado de Direito, separação de poderes, eleições livres, liberdade de imprensa, mas a maioria do mundo não tem estas coisas. Quero com isto dizer que as cidades inteligentes são fantásticas em países livres, mas não devem ser tão fantásticas em sociedades autoritárias, porque o impulso do governo para transformar a cidade inteligente num sistema de vigilância é elevado. Vão tentar fazê-lo em todo o lado, mas, nos países livres, temos ferramentas e organizações sem fins lucrativos e grupos “cães de guarda” que podem impedir que isso aconteça. Já num país como Angola, isso pode ser muito mais difícil.
Em países como o Brasil ou os Estados Unidos (EUA), que estão a passar agora grandes mudanças, as cidades inteligentes são uma ameaça?
Depende, mais uma vez, do nível de confiança que se tem no governo. Regra geral, os populistas vão usar tecnologias e coisas como cidades inteligentes para aumentar o seu poder e vão dizer que qualquer tipo de concessões no que respeita às liberdades é necessário para o bem da sociedade. É o argumento clássico dos populistas. Na China, não são precisos direitos cívicos e liberdades, nem nada do género, pois o mais importante é a nação, a estabilidade, o retrato global. As pessoas que estão agora à frente do Brasil, de alguns países da Europa do Leste ou dos EUA são personalidades autoritárias, que normalmente vemos em ditaduras, como o Hugo Chávez, o Fidel Castro, o Franco ou o Salazar. Todos tinham personalidades extremamente autoritárias e estamos a ver estas pessoas a ser eleitas também em democracias. Não sei se é um fenómeno assim tão novo, pois sempre tivemos pessoas mais populistas eleitas mesmo em democracias, mas o importante é que temos tido a estrutura necessária para prevenir que as transformem em ditaduras. O que vemos na Venezuela, Rússia ou Turquia é que estes países não tinham uma protecção forte o suficiente e os seus líderes conseguiram, ao longo do tempo, passar de uma vitória eleitoral legítima para um regime autoritário. A questão é se, em países como Portugal ou os EUA, há protecção suficiente e, ao nível da cidade, a batalha é a mesma. Vamos construir cidades inteligentes que vão exigir que os seus cidadãos cedam todos os seus dados que irão ajudar a alcançar o objectivo de viver sem falhas, mas será que podemos confiar?
“Numa perspectiva de direitos humanos, o que eu chamaria de futuro distópico é o que, em grande medida, está a acontecer na China. Se pensarmos ao nível da eficiência, o que eles têm é fantástico, mas, quando se trata de direitos cívicos e liberdade de pensamento, é um desastre”.
Mas a tecnologia avança todos os dias. É possível parar essa tendência?
Interessa-me mais a criação de tecnologia que nos permitiria avançar exponencialmente nestas linhas, mas também preservar a privacidade e os direitos de cada um. Por exemplo, há inúmeros campos que podem ser explorados que nos permitem partilhar os nossos dados, mas ter a liberdade sobre como essa informação é apresentada aos outros ou como pode ser manipulada. Há um campo matemático chamado provas de conhecimento-zero, que, de forma simples, consiste em provar que se tem algo sem ter de o mostrar. O que podemos extrapolar daqui é a capacidade de vender a nossa localização, através do smartphone, a uma empresa e esta pode vender a informação a outra e lucrar com isso, mas sem dar toda a informação existente no smartphone. O mesmo pode ser aplicado à identidade e a outras áreas, como vender a idade, sem dar a morada de casa. Há tecnologia que podemos desenvolver e incorporar nas smart cities que vai permitir que o progresso continue, mas também que se preservem os direitos, liberdades e a privacidade. Esta é a parte difícil! É muito mais fácil inovar sem querer saber de privacidade e das liberdades. Tal como as ditaduras são muito mais fáceis do que as democracias.
Qual é o grande desafio aí?
É algo em que é essencial pensarmos – que tecnologias devemos criar para continuar a inovar à escala, enquanto preservamos os direitos e liberdades? Hoje, as gerações mais jovens usam o smartphone para tudo. Se depositam lá tudo o que fazem, para empresas e agências governamentais que podem ver tudo sobre elas e controlá-las, isso é problemático. O nosso desafio é desenvolver coisas que desafiem e abrandem um pouco essa tendência e, no contexto de uma cidade inteligente, é essencial que haja uma entidade, de carácter cívico, que fiscalize os responsáveis municipais. Mesmo que estes sejam benevolentes, não importa!
Como é que isso podia funcionar?
Em Oakland, Califórnia, onde vivo, existe uma organização dessas. É um grupo de cidadãos eleitos que se junta para discutir o tipo de equipamento que a polícia pode comprar para os vigiar, as leis que permitem que a polícia o faça, etc. Este grupo de cidadãos obriga a cidade a prestar contas. Oakland vai, com certeza, avançar e tornar-se numa cidade inteligente em algumas coisas – mobilidade, energia, partilha de dados, o que for –, mas vai haver um grupo cívico cuja responsabilidade é proteger a privacidade e as liberdades das pessoas que vivem ali. Isto é absolutamente essencial para as smart cities!
Estão os cidadãos dispostos a fazer esse trabalho?
Talvez. Mais uma vez, depende! Aqui [Cascais], sim, e isto é uma oportunidade de relações públicas – podem ser o primeiro município da Europa a ter uma departamento anti-vigilância! Oslo, Estocolmo, Tóquio, também. Moscovo, Riade, Pyongyang, não. Depende do tipo de regime – se é uma democracia, ditadura ou qualquer coisa no meio vai ser muito relevante.
Mas como se evita que haja interferência de interesses económicos das grandes corporações?
Essa é uma grande questão. Os grupos de cidadãos podem ajudar. Em última instância, há ideias que se podem aplicar, como a separação do Estado e religião e, mais importante, é a separação de dinheiro e do Estado. Nos países onde isso não acontece, como a Venezuela, é possível imprimir o dinheiro que se quer e isso causa problemas económicos gigantes. Da mesma forma, tem de haver uma separação entre a tecnologia e o Estado. Nos EUA, isso acontece, em alguma medida e de forma orgânica, já que Silicon Valley e Washington D.C. estão muito distantes, mas, noutros aspectos, estão também a crescer muito próximas. O expoente máximo disto é a China, onde o governo controla toda a indústria tecnológica. O que os chineses estão a fazer é de tirar o fôlego e é provável que tentem exportar isso e outros países vão querer copiar. Mas não é aí que queremos estar – a separação do Estado e tecnologia é fundamental. Quando pensamos nas cidades inteligentes do futuro para países livres, como Portugal, é essencial que haja um elemento fiscalizador que evita que se transformem em cidades de vigilância.
Para além dos “cães de guarda”, a lei pode ajudar a proteger o cidadão?
A regulação é algo difícil para mim. As mudanças nas leis de protecção de dados europeias que aconteceram recentemente são bem-intencionadas, mas temos de perceber que os responsáveis eleitos sabem muito pouco sobre como os dados funcionam – basta ver o depoimento do Zuckerberg no Congresso norte-americano, em que muitas das questões mostraram um desconhecimento e incompreensão totais sobre como funciona o Facebook. Penso que é preciso haver leis, mas estes elementos de contrapoder são, para mim, mais importantes. Em vez de criar uma lei, podemos criar uma entidade que fiscaliza o poder do governo. Ou podem fazer-se coisas ao nível da educação ou do jornalismo. Por exemplo, a cidade pode disponibilizar bolsas para estudantes e para jornalistas, para que estes investiguem o sistema de vigilância da cidade. Do ponto de vista da democracia, se fosse o autarca de Cascais, por exemplo, isso seria algo interessante de fazer. Quantos líderes vão fazê-lo? Poucos, mas, provavelmente, serão os vossos! É preciso aproveitar a oportunidade, pois nem todos a têm. As cidades portuguesas podem liderar nesta matéria.
Os cidadãos são fulcrais para impedir um futuro distópico.
Sim. Numa perspectiva de direitos humanos, o que eu chamaria de futuro distópico é o que, em grande medida, está a acontecer na China. Se pensarmos ao nível da eficiência, o que eles têm é fantástico, mas, quando se trata de direitos cívicos e liberdade de pensamento, é um desastre. Falta-lhes esta ideia de prestação de contas aos cidadãos, não têm estruturas independentes com as quais os cidadãos possam fiscalizar o poder do governo e que existem nos países livres.
O sector privado vai ser importante nesta discussão?
Muito. Actualmente, o Google ou o Facebook parecem estar pouco importados com a privacidade e as liberdades. Pelo menos, de um ângulo de relações públicas, parecem não estar interessados. Por isso, vai sobrar para as start-ups e outras empresas, que, se conseguirem tornar as suas tecnologias atractivas o suficiente, algumas destas gigantes vão adoptá-las, como aconteceu com as mensagens encriptadas. Embora, não ainda na extensão que eu gostaria [risos]… Mas é melhor do que nada. Penso que as empresas mais pequenas podem ter muita influência…
Em que sectores deve haver um maior investimento e investigação?
Estamos a caminhar para uma sociedade cashless, que é uma parte crucial das cidades inteligentes. De alguma forma, o euro é privacidade e liberdade de expressão – se te der agora 20 euros, o governo dificilmente vai saber. Mas, se vamos deixar de usar dinheiro físico, então, vai passar a ser muito fácil para o governo saber o que estamos a fazer. Significa isso que temos de criar uma nova forma de dinheiro, digital e que preserve a privacidade? Talvez. Se quer evitar que a sua cidade inteligente não seja uma cidade vigiada, não pode confiar que é a administração que o vai assegurar por si. Alguém vai ter de o fazer, quer seja a sociedade civil, quer seja uma coligação de entidades privadas… Para mim, em última análise, é tudo sobre pagamentos. Como se vai pagar por algo em smart cities? E pode o governo ver isso tudo? Ou pode a empresa que foi contratada para gerir o sistema inteligente de pagamentos censurar, espiar transações?
Esse cenário é inevitável?
É para onde caminhamos, a não ser que duas coisas aconteçam: que os cidadãos o impeçam e obriguem o governo a fazer diferente, ou que se crie tecnologia que não pode ser manipulada. Este é o sonho dos Cypherpunks, quando criaram a Bitcoin. Dinheiro que não pode ser parado. Tem as suas limitações, claro, mas é impossível censurar uma transação na rede Bitcoin e isso é muito louco! É irrealista pensar que os políticos eleitos vão conseguir criar coisas que concorram neste campo. Mas há qualquer coisa aí em que podemos pegar e há uma responsabilidade moral das empresas e indivíduos para fazer com que as cidades inteligentes não sejam cidades de vigilância.
Na sua apresentação, defende o potencial das tecnologias descentralizadas, como a Bitcoin. Que outros exemplos podemos ter numa smart city?
Se levarmos o exemplo das provas de conhecimento-zero mais além, há a criptografia homomórfica e a possibilidade de as empresas serem capazes de vender os nossos dados sem ter de disponibilizar tudo – esta é uma área muito importante que precisa de muita atenção e investimento e também de ser explorada, pois não está ainda onde é preciso, mas pode ser enorme! Outro exemplo será armazenamento à prova de censura – neste momento, se o teu governo quiser impedir-te de visitar uma página na web, é fácil fazê-lo; mas se se fizer o upload destes ficheiros num local que é distribuído e encriptado, como IPFS [sistema de ficheiros interplanetário], é absurdamente caro fazê-lo. Por exemplo, o governo turco não quer que os seus cidadãos vejam a Wikipedia, então, alguém colocou os ficheiros em IPFS, o que significa que os ficheiros estão em dezenas de servidores espalhados por todo o mundo. O que o governo turco vai fazer? Parar todos esses servidores?! É muito difícil. Temos também as VPN, que nos permitem navegar na web sem alarido, ou tecnologias como Tor, que podemos instalar no computador e enviar ficheiros e mensagens pela Internet de uma forma que é muito difícil de espiar. No que toca a pagamentos, há redes descentralizadas que usam privacidade, como a Lightning Network, que podem ser acopladas a Bitcoin. É muito fixe, pois permite que as pessoas façam várias transações por segundo, mas encriptadas. Estas tecnologias acabaram de nascer, têm de ser apoiadas, investidas e exploradas, mas facilmente vejo uma Lightning Network ser a base de pagamentos de uma cidade inteligente.
Portanto, não estamos condenados.
De todo! A descentralização e encriptação de dados e redes de pagamento vão ser fundamentais para que as cidades inteligentes não se tornem cidades vigiadas. Em Portugal, talvez não seja perigoso que o governo saiba os movimentos de um cidadão, mas, num país onde as autoridades o podem sequestrar, isso pode já não ser assim tão bom… O conceito de cidade inteligente tem de ser pensado com muito cuidado. Temos de construir estas tecnologias agora, isso é crítico. Principalmente se as cidades inteligentes se concretizarem e, tristemente, vemos que não há padrões morais para empresas.
Refere-se às grandes empresas?
Diria mesmo na indústria das cidades inteligentes! A IBM vai construir uma smart city na Arábia Saudita, um país cujo governo raptou alguém em Istambul e o cortou aos pedaços e está a tentar safar-se com isso. Ainda crucificam pessoas, prendem as mulheres activistas no país… e a IBM está muito entusiasmada por ir construir uma cidade inteligente em Riade. O que é que essa cidade inteligente vai fazer? Nada de muito bom para os direitos humanos e liberdade!
O ideal de cidade inteligente é ainda parco no que se refere aos direitos humanos?
É perigoso que todo este fenómeno smart cities venha, em muitas formas, dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pelas Nações Unidas – o que parece muito bom, mas, quando vemos com atenção, não diz nada sobre privacidade, liberdade, liberdade de imprensa ou de expressão, separação de poderes ou democracia. Literalmente, zero. Cabe às cidades tomar essa responsabilidade. Há muitas teorias que antecipam que, em breve, as cidades vão ser mais importantes do que os estados, não sei se isso será verdade, mas, claramente, as cidades têm aqui uma oportunidade para liderar em vários aspectos.