Tempos houve em que bater nos animais era considerado, vá se lá saber porquê, normal. Em que ter comportamentos xenófobos, racistas ou homofóbicos era normal. Tempos houve em que a mulher era considerada um objeto, em que o homem poderia invocar a “devolução do corpo” caso a mulher fugisse, acabando esta sendo presa e entregue ao homem. Tempos há em que se consegue ouvir (em pleno século XXI!) numa qualquer missa ou casamento católico que a mulher se deveria remeter ao silêncio. Tempos houve em que chamaram de bruxas às mulheres inteligentes e as queimaram vivas. Tempos houve em que era normal fumar em espaços fechados. Hoje, são absurdos! Hoje, é inaceitável.
Há ainda imagens de aviões nas quais, em vez de cabeças, se vê apenas fumo. As pessoas que queriam fumar tinham direito a fumar em qualquer sítio, mas as pessoas que não queriam fumar não podiam ter esse direito. Simplesmente porque acabavam por fumar passivamente o fumo dos outros. Na altura, proibir os fumadores de poderem fumar em qualquer lugar foi visto como excessivo, radical. As pessoas que defendiam isso eram fundamentalistas.
“Um carro deve ser visto como um luxo, não por ser desejo ou inalcançável, mas por ser extremamente caro possuí-lo (e isso nunca vai mudar). Em Portugal, acresce ainda a necessidade de vender a ideia primária de que os cidadãos se podem tornar pilotos nas estradas. O carro hoje é como o cigarro era há uns anos”.
A verdade é que as sociedades e as cidades mudam depois de raciocinarem. Pensam e adaptam-se às novas descobertas, às novas verdades. Por vezes, demora mais um bocadinho. E esta demora acontece porque as pessoas temem as mudanças, pensam sempre que há um qualquer bicho papão por trás dos argumentos.
Hoje, fala-se muito em mudanças de paradigma, mudanças na mobilidade. Fala-se de andar a pé, de bicicleta, de transporte público. Quando se fala disto, muitas vezes se ouve: “Então e o meu carro? Nós não somos ricos para comprar carro e agora deixá-lo em casa!”. O investimento de muitas pessoas nos carros traduz-se em dívidas aos bancos. Isto porque as pessoas se têm endividado para comprar o seu carro, vendido nos spots publicitários sempre limpo, sem poluição, sem custos com pneus, gasóleo e lavagens, sem lixo espalhado dentro do carro, sem semáforos e sem filas de trânsito. É vendido como uma utopia.
Um carro deve ser visto como um luxo, não por ser desejo ou inalcançável, mas por ser extremamente caro possuí-lo (e isso nunca vai mudar). Em Portugal, acresce ainda a necessidade de vender a ideia primária de que os cidadãos se podem tornar pilotos nas estradas. O carro hoje é como o cigarro era há uns anos.
É incrível como os dois estiveram muito tempo associados. Quem não se lembra da Marlboro patrocinar a Formula 1, o 24 Le Mans ou mesmo o WRC? Quem não se lembra de a personagem principal dos filmes fumar cigarro e andar de carro? Dois objetos nocivos para a sociedade e para as cidades.
Hoje cada vez mais se fala em limitar o uso do carro, limitar o seu uso àquelas viagens em que este é mais eficiente do que qualquer outro modo de transporte. Tal como se falou de limitar o uso do tabaco em determinados espaços. Como os não fumadores têm direito a serem não fumadores, também quem quer andar a pé, andar de bicicleta ou andar de transporte público tem o direito a fazê-lo, e longe vai o tempo em que o carro e quem queria andar de carro podia poluir quanto queria e ocupar todo o espaço público existente.
Longe vai o tempo em que os planeadores pensavam primeiro no carro, depois, no espaço para o carro estacionar, de seguida, em como podiam ter mais capacidade de carros em determinada rua e, por fim, na forma de esses carros todos conseguirem andar a uma maior velocidade. E, assim, se construíram viadutos e túneis para evitar interseções e se colocaram separadores centrais com arbustos altos e redes nas avenidas das cidades, juntando-se ainda as obras de arte para peões. Assim, a cidade se tornou um ambiente hostil para quem quer andar a pé, de bicicleta ou de transporte público. E nem toda a gente tem de deixar de andar de carro. Não é disso que se trata. Trata-se apenas e só de garantir que aqueles que não querem andar de carro têm a oportunidade de o fazer, com o mesmo direito que os que querem. Trata-se de nivelar o terreno, de democratizar a cidade. E, se queremos um planeta mais saudável, temos de ter cidades mais saudáveis. E isso consegue-se dando oportunidade para que quem quer ajudar ajude. Tal como se concedeu o direito de quem não fuma ativamente não fumar passivamente.
E tudo se resume a política. Não tem nada a ver com partido, nem com esquerda, nem com direita, nem com centro. Não falamos de política partidária. Falamos de política de cidade. E os Presidentes de Câmara são (ou deviam ser) os líderes políticos das cidades (não os líderes partidários, isso é outra questão) que devem garantir uma maior igualdade de oportunidades para os cidadãos. Precisamos de políticas de mobilidade.
Precisamos de mais pessoas a andar a pé, de bicicleta e de transportes públicos. Precisamos de investir na transformação das infraestruturas das cidades, tornando-as tão seguras que deixamos os nossos filhos pedalar para a escola e os nossos avós atravessar calmamente as ruas.
#CIDADÃO é uma rubrica de opinião semanal que convida ao debate sobre territórios e comunidades inteligentes, dando a palavra a jovens de vários pontos do país que todos os dias participam activamente para melhorar a vida nas suas cidades. As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.