Se, para muitos, plantar os próprios alimentos não passa de uma ideia romântica, há, nas cidades, quem não se importe de pôr as mãos à obra. Desde as hortas comunitárias às hortas verticais ou às micro-hortas em varandas ou coberturas de edifícios, a agricultura faz parte do cenário urbano, numa relação win-win entre o cidadão e a cidade.
Plantar uma horta e cultivar os próprios alimentos faz parte do imaginário de muitos de nós. Quem nunca desejou, nalgum momento, largar tudo, ir para o campo e cuidar da terra? Uma visão romântica, como tantas outras, de pôr as mãos na terra, que nos deixa a segurança de voltar às origens, de estar em comunhão com a natureza e de viver do que esta nos dá. Mas, se largar tudo nem sempre é possível, cuidar de uma horta, ainda que na cidade, é outra história e há já muita gente a fazê-lo. Das ervas aromáticas aos vegetais, a agricultura urbana é uma prática cada vez mais comum e é, inclusivamente, uma estratégia assumida pelas cidades. A par das hortas, pomares e até vinhas comunitárias que se vão organizando, desenvolvem-se sistemas e tecnologias que melhor se adaptam às características do ambiente urbano e que permitem a sua prática nas varandas e coberturas. No que toca à agricultura urbana, não é de moda nem de sobrevivência que estamos a falar, mas de algo muito mais profundo e que faz tanto parte do nosso ADN, como do das cidades.

Ligação às raízes
O interesse em saber cuidar de uma horta está a aumentar e, por isso, Rute Sousa e Ricardo Pires decidiram dar asas à sua Escola de Horticultura. “Começámos com iniciativas com crianças durante o Verão, mas verificámos que havia procura e trabalho para o ano todo”, contam. A dupla fundou, assim, a Associação Chão da Terra, que organiza, entre outras coisas, workshops de horticultura em centros comerciais. A adesão é evidente. “Estamos a perder a ligação à terra. Toda a gente precisa de comer, mas ninguém produz nada”, avalia Rute Sousa, “este interesse crescente é o nosso lado humano, é instintivo que nos queiramos reconectar a isso”.
Afastados do campo, é normal que poucos de nós saibamos o que fazer para criar alimentos, o que leva também muitos pais a procurarem saber mais para ensinar aos filhos. A vertente pedagógica e a vontade de envolver a família nestas actividades é uma das razões que levam as pessoas a procurar António Rodrigues, responsável de marketing do Minigarden, uma tecnologia portuguesa que permite o cultivo no plano vertical. “Nos centros urbanos, perdemos as competências, mas gostar de plantas está no nosso ADN. Essa foi a nossa actividade principal durante milhares de anos e ficou connosco, quer queiramos quer não”, afirma.
Para além do recuperar de competências e da ligação à terra ou a tradições antigas, questões como a segurança alimentar, a frescura e autenticidade dos alimentos ou a necessidade de ocupação de tempos livres pesam também na vontade de trabalhar uma horta. Por sua vez, a componente económica não pode ser deixada de parte. Para muitas famílias, uma horta representa um complemento indispensável ao rendimento, seja pelo consumo próprio, seja pela venda. Aliás, episódios da Hístória, como as grandes guerras, não deixam esquecer o papel determinante da agricultura urbana, em particular das hortas urbanas. “Em períodos de crise, as hortas urbanas revelam o seu valor estratégico na garantia de alimento”, conta Teresa Madeira da Silva, docente e investigadora na área de Arquitectura e Urbanismo do ISCTE.
Fazer da horta terapia
Reduzir o interesse pela agricultura urbana à carência económica é, cada vez mais, um engano. Os benefícios desta prática são evidentes e vão para lá dos alimentos que se cultivam. “As pessoas levam daqui interacção social, cidadania, companheirismo, contacto com a terra, com a natureza e, às vezes, levam umas alfaces e umas couves. Isso é só a cereja no topo do bolo”, revela André Miguel, técnico responsável pelas Hortas de Cascais. Desde 2009, o município criou 13 hortas comunitárias – mais de 14 mil metros quadrados – entregues a 216 famílias. Mais recentemente, foi alargando o projecto às escolas e centros de dia e, muito em breve, este vai abranger uma vinha e um pomar comunitários. Cascais não é caso único e as hortas urbanas foram, nos últimos anos, abraçadas com carinho pelos municípios portugueses. Lisboa, Porto, Oeiras, Barreiro, Almada ou Funchal têm também iniciativas semelhantes e se, inicialmente, estas surgiram em forma de resposta à apropriação e uso ilegal de terrenos, motivados por carências económicas das populações, actualmente, estão inseridos em estratégias coordenadas que visam, acima de tudo, reforçar os laços sociais.
Para Nuno Piteira Lopes, vereador das áreas de Gestão Territorial e Intervenção Territorial, Cidadania e Participação e Desporto de Cascais, o projecto da vila pode ser resumido numa só palavra: solidariedade. “Todos estes projectos interligados fazem com que se fortaleça o espírito de comunidade e de solidariedade entre todos”, explica, sublinhando a vontade de “os vizinhos voltarem a ser vizinhos em Cascais e não condóminos que apenas se reúnem para debater chatices”.
A atribuição de talhões nas hortas de Cascais é feita com base na ordem de inscrição e freguesia de residência e inclui uma formação de doze horas. Durante um ano, a câmara disponibiliza gratuitamente a parcela e a água ao horticultor, que, por sua vez, se compromete a tratar a horta, mas também assegurar a manutenção do espaço, cumprindo as regras impostas pela autarquia. “Quebrámos o paradigma das hortas dos bidões e que eram, de alguma forma, repelentes. As hortas são os ex libris dos bairros”, descreve André Miguel. Aqui há duas palavras chave. A primeira é “comunitário”, já que tudo é partilhado, desde os abrigos das ferramentas aos pontos de água e compostores. A segunda é “diversidade”. “As hortas devem ser o mais diversas possíveis, para trazer bons exemplos e não criar as hortas estigmatizadas das pessoas com fome. Queremos uma diversidade grande, porque acreditamos que é isso que socialmente vai ajudar as pessoas”, explana. Por esse motivo, não é fácil traçar um único perfil do horticultor – “Há o velhote, mais clássico, com alguma tradição da terra e que ir buscar esse saber e tem saudades do contacto com a terra; há os casais novos, com filhos, que, numa vertente pedagógica, querem ensinar os miúdos e mostrar-lhes o que é uma couve ou uma alface; e temos o normal da pessoa de meia idade que sente necessidade de ir à procura de alimentos mais saudáveis. Não é fácil definir perfil socioeconómico ou mesmo escalão etário, há de todas as idades e de todas as proveniências sociais”, descreve o técnico.
“Cidade enquanto artificialização da natureza”
Alimentos mais saudáveis e frescos, bem-estar, comunidade, lazer e um extra ao rendimento são os benefícios que as pessoas retiram destas iniciativas, mas e a cidade? Tira algum partido? Antes de responder a esta questão, importa compreender o papel que a agricultura deve ter no planeamento urbano. Habituados a associar a agricultura às zonas mais rurais, para muitos, juntar as palavras agricultura e urbana pode parecer disparate. “Está absolutamente correcto”, garante Manuela Raposo Magalhães, coordenadora do Centro de Investigação em Agronomia, Alimentos, Ambiente e Paisagem do Instituto Superior de Agronomia (ISA).
Pensar numa fronteira entre a cidade e o campo não faz hoje sentido, já que, à medida que as cidades foram crescendo, essa dicotomia foi desaparecendo. Mas a natureza não desaparece só por lhe construírem edifícios em cima, sublinha a também arquitecta paisagista, pelo que o segredo está em conseguir uma alternância entre os espaços edificados e os não edificados, sendo que é nestas áreas que devem ser pensados as iniciativas de agricultura urbana. “Estas são áreas que não podem ser construídas e que têm de ter absolutamente outras funções, assumindo uma configuração mais ou menos linear, mais ou menos engrossada e contínua.
Estas áreas coincidem com zonas onde os solos são melhores e onde há água”, explica. Ou seja, “fazem necessariamente parte das cidades”. É com base neste pressuposto que a investigadora tem trabalho com municípios da Área Metropolitana de Lisboa na elaboração dos chamados Planos Verdes, no sentido de desenhar a estrutura ecológica desses concelhos e uma proposta de ordenamento que englobe essa alternância de usos de acordo com um conceito de “aptidão ecológica”, ou seja, a capacidade que determinada área tem para receber determinada utilização, quer seja agrícola, quer seja matéria de arbórea, quer seja em matéria de cidade.
Quais são, então, os benefícios de saber aproveitar esses espaços? “A vegetação continua a ter um efeito importantíssimo na cidade em termos de termo-regulação, controlo da humidade, e tudo isso está associado àquilo a que chamamos de biodiversidade. A agricultura urbana põe todo o sistema ecológico [da cidade] a funcionar”, complementa.
Por seu turno, Rute Sousa destaca a questão logística do transporte de alimentos, isto porque “se produzirmos localmente, reduzimos os fluxos, logo, reduzimos as emissões de CO2”. Outros benefícios advém de práticas que resultaram da forma como o ambiente urbano está também a influenciar a prática agrícola. Nessa matéria, Teresa Madeira Silva sublinha medidas como o uso de lixo orgânico urbano para a produção de adubo do solo e o uso das águas residuais para a irrigação.
Alimentos seguros?
Olhando para tudo isto, o balanço final é favorável à agricultura urbana, mas podemos mesmo comer aquilo que se cultiva na cidade? Ana Mesquita, arquitecta paisagista e responsável pelo sistema de coberturas ajardinadas da Landlab, alerta para a questão da poluição. “É importante perceber que não é em todo o lado que podemos ter hortas [neste caso, nas coberturas], pois os legumes e vegetais podem absorver metais pesados que nos fazem mal”. Nesse aspecto, Manuela Raposo Magalhães confirma que “há um cuidado diferente” a ter no espaço urbano. “Os alimentos produzidos perto da circulação automóvel podem trazer problemas de contaminação e isso tem de ser monitorizado, tal como o próprio desenho ao nível de espaço das hortas tem de ser diferente, porque tem de ser protegido por sebes que funcionem como filtros”, esclarece.
A monitorização pode ajudar na resposta: um estudo recente do ISA e do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) analisou os produtos agrícolas de seis hortas urbanas da capital e concluiu que a sua qualidade raramente apresentou contaminação, apesar de as concentrações de alguns dos elementos analisados nos solos e águas excederem o recomendado. “Com algumas excepções, as hortas urbanas produzem bons produtos para consumirmos”, concluiu, na apresentação do estudo, o vereador do Ambiente Lisboa, José Sá Fernandes.
Alcançar a autossuficiência de produtos hortícolas das cidades é ainda uma ideia longínqua. Entre os que consideram que é “absolutamente possível” e os que “têm sérias dúvidas”, a agricultura urbana assume um papel importante e indiscutível na sustentabilidade das nossas cidades. Ainda que não se consiga a autossuficiência, “continuarmos a ter tudo aquilo que consumimos fora das cidades é que é uma utopia”, exclama Rute Sousa. E, para André Miguel, não se trata só de sustentabilidade: “Se, em 2010, me perguntasse se estávamos perante uma moda, talvez lhe dissesse que sim, mas, hoje, digo-lhe que [isto] faz parte da resiliência das cidades”.
*O artigo foi publicado, originalmente, na edição #11 da revista Smart Cities. Aqui, com as devidas adaptações.