Oiço dizer que vai ficar tudo bem. Em parte, concordo. Muitos males que surgiram ao longo de séculos trouxeram mudanças e algumas muito dolorosas. Outras “aparentemente” dolorosas, mas que contribuíram para o surgimento de novos paradigmas de desenvolvimento. Ainda há bem pouco tempo, pouco mais de uma década, assistíamos à queda de cidades e países inteiros como consequência da evolução nos comportamentos dos consumidores, abandono de sistemas tradicionais de produção e deslocalização geográfica das respetivas unidades, mas também devido à corrupção e má gestão de muitos governantes e responsáveis de instituições financeiras e outras.

Mais de metade da população mundial estará, por esta altura, confinada em sua própria casa. Um fenómeno de reclusão ímpar que muitos esperavam nunca ter a oportunidade de viver (e alguns reviver) fora de momentos de guerra e grandes calamidades. Mas a verdade é que estamos numa guerra. Uma pandemia que pode descontrolar-se e transformar-se em calamidade. Contudo, em muitos setores da governação e não só, a situação parece estar a ser gerida como se se tratasse de mais uma oportunidade para egocentrismos, gestão de imagem pessoal e recolha de dividendos políticos (e outros).

Vemos, demasiadas vezes, líderes, empresários e governantes em verdadeiras ações de propaganda com mensagens a colidir com as veiculadas pelas entidades oficiais, a dos especialistas, investigadores e profissionais capacitados para gerir e lidar com pandemias. Vemos, demasiadas vezes, bons exemplos e ações de extrema dignidade e bondade serem usurpadas e obliteradas pelas máquinas de marketing e influencia nos media, tornando quase impossível distinguir o que é coração e altruísmo do oportunismo cínico. Uma Guerra de valores.

As cidades estão a ser o principal palco desta guerra. Estão irreconhecíveis e debilitadas naquilo que é a sua força natural, o seu pilar mais forte: a proximidade social, a interação pessoal, a dinâmica cultural e de rituais aparentemente caóticos, mas alinhados com o tecido humano que a compõe. Neste momento de “distanciamento social”, tudo se apresenta diferente. O distanciamento, que uma minoria já adotava fosse por razões culturais ou de personalidade, tornou-se lei e a responsabilização de quem se vê manietado nas suas ações e concretizações começa a ganhar corpo e forma nos mais diversos locais do globo.

“Ficaremos bem? Talvez sim. Acreditemos que sim, mas apenas se soubermos usar este tempo de trevas para purificar e expurgar os nossos impulsos mais primitivos de sobrevivência e fortalecer as imunidades de que mais precisamos no dia seguinte: a compaixão, o amor e a solidariedade para que o mundo seja mesmo melhor.”

O verdadeiro efeito do vírus revela-se na disseminação do medo e do pânico, transformando cidadãos inteligentes e esclarecidos em verdadeiros agentes de controlo sanitário e inquisidores comportamentais num fenómeno de manada. Se é verdade que o isolamento social é uma das formas de combater a pandemia e evitar a propagação do vírus e consequente morte de milhares de cidadãos, especialmente os mais fragilizados, também não é menos verdade que será impossível evitar todas as mortes e infeções e demais consequências nefastas para a saúde dos nossos concidadãos, além das consequências obvias na economia e na nossa psique coletiva.

O papel de uma smart city em toda esta crise, dizem alguns, será o avanço para a tão desejada política de dados abertos, a instalação de sistemas de Inteligência Artificial (reconhecimento facial e outros algoritmos) e demais mecanismos e tecnologias de controlo e regulação de quarentenas forçadas e que possam suprimir ou reduzir consideravelmente a dispersão deste e de outros vírus.

Já sabemos todos que estas tecnologias vão ser incorporadas no nosso dia-a-dia muito em breve. É inevitável. Estão já a ser utilizadas em grande escala em países como a China e Rússia. No Ocidente, tínhamos ainda uma ligeira resistência por questões de privacidade e proteção de valores democráticos e constitucionais. Essas premissas não existem em estados de emergência quando todos os direitos ficam suspensos até novas ordens que ninguém sabe quando (e se) chegarão.

Mas o verdadeiro problema desta pandemia não é a adoção de tecnologia para controlar e confinar os cidadãos a limitações supostamente temporárias. O que começamos a observar nas nossas cidades, alegadamente inteligentes, é a degradação de muitas relações humanas, dentro e fora de portas. As regras impostas pelos governos em “lockdown” são para cumprir e quem não cumprir fica agora à mercê do julgamento e repreensão direta não das autoridades, mas dos cidadãos outrora esclarecidos e letrados, mas, entretanto, “reconfigurados” para um papel de autênticos “vigilantes”. E se estamos apenas no início e já se verificam agressões, insultos e outras formas de intimidação a quem tem por necessidade ou obrigação de sair de casa nem que seja para ir comprar papel-higiénico, o vírus começa a revelar finalmente ao que veio: mostrar a nossa verdadeira natureza enquanto comunidade que nas redes sociais partilha flores e arco-íris num post e chama os nomes mais feios a quem ousa pensar diferente noutro. Cidadãos que nas varandas aplaudem, cantam canções e manifestam-se a favor de um mundo melhor, mais otimista e justo e, na mesma varanda, insultam e verbalizam ódio, xenofobias e outras desqualificações a quem passeia animais de estimação ou regressa a casa com as compras da mercearia. E estamos apenas no início.

A COVID-19 e o coronavírus devem ser considerados pelos nossos governantes e líderes não apenas como uma ameaça à nossa saúde, mas a maior ameaça à nossa humanidade. Alimentar o medo e o pânico independentemente de quem morre ou se salva é o caminho errado. Lançar aplicações de “seguimento” de infetados, colocar carimbos em quem é “positivo” ou outras formas de identificar vítimas deste vírus seja por que razão for, são as ferramentas do regime do “novo amanhã” que pode estar aí para vir. Um novo amanhã, que já foi um “velho ontem”.

Como noutras ocasiões da nossa História, as ferramentas podem mudar de nome e ser humanas ou tecnológicas, mais ou menos avançadas, mas os objetivos e resultados serão sempre os mesmos e isso as cidades inteligentes e o mundo democrático e progressista não podem tolerar. Ficaremos bem? Talvez sim. Acreditemos que sim, mas apenas se soubermos usar este tempo de trevas para purificar e expurgar os nossos impulsos mais primitivos de sobrevivência e fortalecer as imunidades de que mais precisamos no dia seguinte: a compaixão, o amor e a solidariedade para que o mundo seja mesmo melhor. Apesar dos vírus.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.