A contratação pública de inovação é ainda pouco frequente em Portugal. Desconhecimento, elevada percepção de risco, falta de competências e pouca tolerância ao erro são algumas das fragilidades que este procedimento apresenta no nosso país. Para Luís Ferreira, da coordenação de Unidade de Valorização de Políticas da Agência Nacional de Inovação (ANI), é preciso experimentar mais para ganhar calo nesta matéria, até porque a contratação pública de inovação pode ser determinante numa resposta mais ágil a emergências como a que vivemos hoje.

O que é a contratação pública de inovação?
As compras públicas de inovação traduzem-se numa aquisição pública de um bem ou serviço que não existe no mercado. É mais desafiadora do que a contratação pública regular, porque não procura um produto existente – por exemplo, não se procura uma lâmpada, desafia-se o mercado a fornecer luz. Isto faz toda a diferença, pois trata-se de uma função e não de um produto.

Porque é que interessa às cidades inteligentes?
As cidades têm contornos que fazem diferença. São organismos onde se concentram cada vez mais pessoas, o que resulta em solicitações para manter essas pessoas e as suas vidas – a trabalhar, a consumir, a deslocarem-se, a divertirem-se, etc. Há um conjunto de serviços que os municípios precisam de implementar e disponibilizar aos cidadãos. As cidades inteligentes querem optimizar recursos, satisfazer os cidadãos, promover valores, e querem ser competitivas e especializadas, ora, estes são condimentos à necessidade de soluções de compras de bens e de desenvolvimento de novas soluções que não se compaginam com catálogos e fornecedores típicos. As cidades são pólos de desenvolvimento e são, por si próprias, drivers de inovação permanente.

A contratação pública de inovação é frequente no contexto nacional?
É ainda muito tímida. Está a dar os primeiros passos. No caso dos municípios, há alguns exemplos e intenções. Lisboa é claramente uma cidade que tem uma consciencialização e sensibilidade para a contratação pública de inovação e, no seu caso, a sustentabilidade e a acção social são drivers fortíssimos. Mas há muitos outros municípios que têm muito interesse e estão sensíveis ao tema, como o Porto, Torres Vedras, Cascais. Há um potencial enorme e temos tido exemplos de iniciativas muito interessantes em áreas como a energia ou a mobilidade.

O que torna um município mais disponível para o tema?
Por um lado, a visão, o facto de a gestão de topo do município acreditar nisto. Todos os serviços públicos em que a gestão de topo acredita e incentiva a sua função de compras para os desafios de desenvolvimento da organização, seja de um serviço de administração pública, seja de um município, isso faz toda a diferença. Por outro, as competências. Não basta haver uma maior sintonia da gestão de topo em pretender intencionalmente contar com a função de compra para poder alavancar a sua eficiência e qualidade dos serviços. Nas unidades de compras, tem de haver competências que permitam ir mais além.

A falta de competências é uma lacuna?
É uma das principais lacunas, sim. A contratação pública de inovação é uma compra que exige um contacto e diálogo com o mercado para o desenvolvimento das soluções, e, se não houver competências para estabelecer essa ligação, que tem também de ser completamente transparente – o que traz mais complexidade ao processo –, é muito difícil.

O que acaba por ser uma barreira ao procedimento. Existem outras?
Logo à partida, há desconhecimento e falta de sensibilização para o tema. As pessoas não sabem, normalmente, do que se trata, nem da sua relevância. A contratação pública de inovação pode ser posta ao serviço estrategicamente e, quando começamos a falar da utilização da função de compras de forma estratégica para a organização, estamos a dar uma importância ao tema. Ultrapassada esta questão, há o problema inevitável do risco aparente. Há a percepção de que comprar inovação introduz um factor de risco – o que tem também algum fundamento – e estamos a falar de dinheiros públicos. Na mente de quem tem de gastar e gerir dinheiro público, este é um tema que não é muito confortável, mas, assim como há a percepção de uma compra mais arriscada, deveria, à partida, haver também a consciência de que é uma compra que traz vantagem, que vai adicionar valor ao dinheiro que se gasta. Se já houvesse muita experiência em executar estes contratos, este nível de risco baixaria grandemente, pois a experiência permitiria que estes fossem mais bem defendidos e não houvesse tanta susceptibilidade para errar. E que houvesse também uma certa abertura de quem gere as organizações para dar o espaço ao erro.

No sector público, não há muita margem para errar.
Em Portugal, não, e os municípios vêem-se um pouco aflitos nessa matéria. Os que têm experimentado [a compra pública de inovação] têm-no feito, sobretudo, com recursos próprios e com projectos que não são radicais.

É possível colmatar essa fragilidade?
Com base no que temos feito na ANI, concluímos que faz falta um instrumento financeiro nacional que promova a inovação vinda pelo lado da procura pública. Isso não é uma invenção, já existe noutros países, por exemplo, em Espanha. A falta de financiamento é uma barreira e obtê-lo [através deste instrumento] ajudaria a baixar o risco. Para introduzir estas práticas, era preciso que tivéssemos mais serviços públicos a experimentá-las.

“Se já houvesse muita experiência em executar estes contratos, este nível de risco baixaria grandemente, pois a experiência permitiria que estes fossem mais bem defendidos e não houvesse tanta susceptibilidade para errar.”

Como chegaram à conclusão da necessidade de um instrumento financeiro nacional?
É a observação do contacto com a comunidade que estamos a criar. Desde o ano passado, temos estado a construir a Comunidade Nacional para as Compras Públicas de Inovação, que reúne entidades públicas que já tiveram ou estão a ter a experiência de financiamento do Horizonte 2020 (H2020) para compras, sobretudo, pré-comerciais. Este é um tipo de contratação onde há uma intensidade de desenvolvimento grande e, portanto, o objectivo é chegar a uma solução muito próxima de um protótipo funcional. Esta compra tem sido muito promovida pela Comissão Europeia e há um programa para financiamento. Desta comunidade, fazem também parte entidades que manifestam o seu interesse na contratação pública de inovação por diversas razões – autoridades, agências, entidades do sistema científico-tecnológico, empresas, clusters, etc.

É possível que esse instrumento se torne uma realidade?
Na nossa ideia, sim, até porque já fizemos algum trabalho nesse sentido. Preparámos um documento para a tutela da Economia para, no fundo, dar referências e descrever o que, para nós, deveria ser este instrumento e enquadrá-lo no próximo quadro de apoios dos fundos estruturais.

Esse instrumento poderia ter sido útil no actual cenário de pandemia?
Com certeza que sim. O facto de não existir nenhum [instrumento do género] desencadeou a necessidade de criar, junto de mecanismos que já existem, algo híbrido. A necessidade de financiamento foi uma das primeiras questões a resolver, disponibilizando um programa para encontrar soluções dedicado à Covid-19. Foi um programa reactivo à necessidade de arranjar financiamento para que as empresas começassem a desenvolver soluções. Se existisse já um mecanismo maduro, era um recurso a que os compradores públicos de saúde poderiam ter recorrido.

Como avalia a agilidade dos mecanismos de contratação pública durante esta fase?
Por termos uma proximidade muito grande com o IMPIC – Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, que é o regulador da contratação pública, apercebi-me de que houve, de imediato, uma necessidade muito grande e que [a resposta] foi tão célere quanto possível. Da parte de quem precisou de contratar, houve uma necessidade de saber que podia contratar de forma mais célere e mais prática. Num contexto de emergência, a contratação pública foi imediatamente um factor crítico, que foi necessário agilizar, acelerar. Isto diz-nos que a contratação pública é uma função premente, estratégica. Esta situação deve ter, com certeza, tocado várias campainhas relativamente à utilização estratégica das compras.

Prevê que haja algum impacto para o futuro?
Não sei dizer se a contratação pública vai ficar igual ao que estava. À semelhança de outras áreas e funções do Estado que terão sido mais solicitadas – e a contratação pública foi uma delas –, o momento terá introduzido aprendizagens. Não sei se ficarão para sempre, mas as aprendizagens não devem ser esquecidas. Este contexto específico suscitou uma série de mudanças riquíssima e que extravasa o âmbito da saúde. Só o facto de a sociedade estar confinada levantou várias necessidades públicas das quais não havia sequer noção. As necessidades que se criaram são imensas!

E o mercado respondeu. Criaram-se soluções de um dia para o outro.
O próprio confinamento fez abrandar actividades económicas e, por esse motivo, muitas empresas tiveram possibilidade de se dedicar a outras áreas, ou porque não faziam negócio e tiveram rapidamente de agir, ou simplesmente porque quiseram ajudar.

“Num contexto de emergência, a contratação pública foi imediatamente um factor crítico, que foi necessário agilizar, acelerar. Isto diz-nos que a contratação pública é uma função premente, estratégica. Esta situação
deve ter, com certeza, tocado várias campainhas relativamente à utilização estratégica das compras.”

Em 2021, no âmbito do projecto Procure2Innovate, Portugal vai passar a ter um centro de competências para a contratação pública de inovação. O que isso vai trazer, em particular para os municípios?
Os municípios são um dos alvos, mas não o principal. Acreditamos que os municípios são agentes locais muito relevantes e, como têm uma maior autonomia para a contratação pública, têm alguns graus de liberdade que permitem o uso da contratação pública de forma estratégica mais rapidamente. Ora, estes agentes locais beneficiariam sempre de um centro de competências, que vai disponibilizar, de forma estruturada, acompanhada e crítica, um conjunto de boas práticas. O centro vai concentrar a sua actuação na sensibilização.

Poderá ajudar a colmatar as lacunas de que falámos.
Exactamente. Ao nível das competências, vamos ter de dar passinhos pequenos, mas bem dados, até porque não nos podemos esquecer de que este centro é uma iniciativa no âmbito de um projecto europeu. A ANI vai desenvolver este centro em estreita colaboração com o IMPIC e vamos ter serviços de apoio jurídico à contratação pública de inovação e disponibilização de informação base – que já começou a ser feita. Vamos promover a sensibilização e, do lado da ANI, tentar, numa primeira fase, enquanto não há um instrumento financeiro nacional, aproveitar o mais possível o financiamento do H2020, que, na maioria das vezes, não é totalmente explorado. O centro de competências ajudará entidades adjudicantes nacionais a entrar neste circuito e a ter alguma aprendizagem em grupo de forma mais tranquila. Numa segunda fase, pretendemos ajudar no diálogo com o mercado. É de esperar que a solução para muitas das necessidades que vão surgindo não venha do conjunto de fornecedores habitual. Pode haver interesse em ajudar a encontrar, de forma credível, fornecedores de ideias e outras predisposições para trabalhar as soluções. Por exemplo, se um hospital quiser adquirir uma solução de lavagem de camas com certos requisitos, provavelmente, esses requisitos não vão vir do fornecedor tradicional de camas de hospital ou do lavador de camas, mas podem vir de fornecedores de cabines de pintura, que nada têm a ver com hospitais.

Isto é, inovar.
Ora bem! Essa dificuldade que um comprador público tem em dialogar e encontrar aqueles que podem vir a trabalhar com ele na solução é uma das funções de nível mais superior que o centro de competências quer vir a ter, até porque a ANI está muito próxima do ecossistema de inovação e seria natural assumir esse papel.

Como podem os portugueses a melhorar a sua compra pública de inovação?
Uma das formas de aprendizagem é a participação em projectos internacionais. No nosso caso, estamos em dois, o Procure2Innovate e o iBUY, que nos permitem ter contacto com práticas relacionadas com as competências e com instrumentos financeiros e de políticas, respectivamente. Quando terminarem, há a intencionalidade de manter a rede viva e na qual haja a oportunidade de continuar a trocar experiências e contactos. À medida que esta rede se consolida, isso vai facilitar as operações dos vários centros de competência europeus e caminhar tendencialmente para uma harmonização.

Quais são as perspectivas futuras da ANI no que se refere à inteligência dos territórios?
Estamos atentos ao tema. Somos parte activa de um Plano de Acção para a Economia Circular, que é um enquadramento em que a inteligência territorial tem cabimento, já que as regiões são pólos de desenvolvimento, consumo de recursos e de optimização e eficiência na sua utilização. Estamos sempre na dianteira da promoção de I&D (Investigação e Desenvolvimento) e de desenvolvimento tecnológico colaborativo. Do ponto de vista da política pública, enquanto ANI, nas unidades mais relacionadas com a transferência de conhecimento, políticas públicas e apoio às tutelas, estamos a fazer acompanhamento e a produzir informação, por exemplo, através do mapeamento de competências, avaliando o que são as iniciativas de concepção ecológica das empresas, etc. Estamos muito sensíveis a estes temas, sempre na óptica de ver que desafios públicos podem suscitar inovações e de que forma faz sentido propor programas e linhas de apoio novas, coisas que mobilizem e tenham dimensão. Este é o papel da Agência!