As fotografias de Sohan Gupta no Arsenale. |Fotografia de Mário Caeiro

 

Qualquer percurso pela Bienal de Veneza – seja de pavilhão em pavilhão, seja ao atravessar a exposição principal nos Giardini e no Arsenale – faz tanto mais sentido quanto mais soubermos relacionar pequenas e grandes narrativas, tendências culturais e acontecimentos praticamente invisíveis. Sendo este equilíbrio o objectivo desta breve ‘visita guiada’, convido os leitores a estabelecer relações produtivas entre coisas que, à partida, poderiam parecer distantes; seja a Bienal essa montra de ideias e prácticas projectuais que, pelo mediatismo e investimento, vale sempre a pena conferir. Até 24 de Novembro.

PARTE VIII

O caso do Pavilhão de Gales é curioso. Undo things Done – um título-programa – assume-se como inquérito poético, construído em diálogo com histórias pessoais, em torno dos temas do lugar, da política e da classe. A metodologia é costumeira num evento que promove a figura individual do artista para depois, paradoxal- e quase neuroticamente, lhe exigir relevância sócio-política. A questão é que quase sempre algo de essencial se perde, no contexto de Veneza, entre a subtileza dos processos dos criadores e a materialização dos seus conceitos num evento de massas.

No caso extremo de Sean Edwards, uma investigação acerca da sua experiência de ter crescido num council estate de Cardiff traduz-se numa coleção de peças que na sua singeleza – e cinismo – são ao mesmo tempo um testemunho da sua ética e um acto de uma neutralidade face à cultura do espectáculo que ao limite o torna… invisível. Esta é a Veneza ‘para profissionais’, para circuitos mais ou menos fechados em termos do discurso da arte (mesmo quando o seu assunto é o quotidiano urbano). Em suma, passar por Gales vale a pena, mesmo que a exposição, à partida, seja tudo menos obviamente memorável.

Esta questão da memorabilidade tem a ver com a dificuldade de artistas e obras estabelecerem o espaço vital para as obras; quando a coisa corre mal, fica-se a participação pelo ‘marcar presença’. Afinal, o ambiente de feira de arte que o layout da exposição nos Giardini e no Arsenale favorece chega a entrar em conflito com a eventual transmissão de ideias e experiências. Uma excepção são as fotografias da Índia de Soham Gupta, belissimamente montadas como uma impressiva galeria de… miseráveis.

No pavilhão da Irlanda, por exemplo, a décalage entre discurso (teoria) e experiência (práctica) sente-se de forma evidente. Uma coisa é a artista – Eva Rothchild – estar consciente da importância de criar uma zona de acolhimento do espectador (esculturas-anfiteatro), outra coisa é essa consciência traduzir-se em concreta criação de um campo aberto à plenitude do momento, devidamente protegido da ansiedade e da dispersão típica dos grandes eventos. É nestes termos que podemos ler nas palavras da artista irlandesa mais do que uma questão, técnica, mas propriamente um desafio cultural: The Shrinking Universe é um convite ao olhar, a estarmos atentos ao nosso meio envolvente e acima de tudo a estarmos presentes junto da obra.

Nesta peça, se epitomiza a essência desta edição de Veneza. O desejo da arte nos ajudar a viver em tempos interessantes é isso mesmo, apenas um desejo. Ainda que este ‘apenas’ signifique por vezes ‘o que tem de ser feito’ para que os tempos se tornem, no imediato, objeto do nosso interesse e fascínio.